Uma família não é perfeita, porque não é feita à medida. Mas tem dentro dela o que nos ajudou a sermos o que somos. Alguém que nos viu crescer é alguém que nos vale de muito, porque sabe de onde viemos e quem fomos antes disto tudo.
NA SEMANA PASSADA fui até ao norte comemorar os 90 anos da minha tia Linda, irmã mais velha do meu pai. A família reuniu-se no clássico Clube de Leça, a mesa central com o meu pai e as as irmãs ao lado, cada uma com uma idade maior do que a outra, cada uma com a sua maleita, com as suas dores e alegrias, mas todas ali, o clã reunido para festejar a Nogueira mais antiga. Quando não se está com a família há algum tempo, é nos aniversários e nos funerais que se fazem as contas aos que nasceram, aos que morreram, aos que agora fazem parte da família e aos que a deixaram, mas que vão aparecendo nas histórias que se vão contando a cada encontro. Crianças que nasceram agora com sangue antigo, primas e primos que cresceram e que agora me fazem franzir a memória até os encaixar na lembrança que tinha deles. As queixas, os elogios, uma família é um bicho inquieto e imprevisível, cada um com a sua versão de um acontecimento, com dores passadas que ainda se arrastam até hoje, mexericos nos cantos sobre este e aquele, lágrimas de alegria pelos reencontros, outras de tristeza pelas dores de alma, um grupo de pessoas que aprendem a não se magoar, mas que se magoam sempre um bocadinho. Uma família não é perfeita, porque não é feita à medida. Mas tem dentro dela o que nos ajudou a sermos o que somos. Alguém que nos viu crescer é alguém que nos vale de muito, porque sabe de onde viemos, e quem fomos antes disto tudo; são espigões que se afundam na terra, para que por muito que andemos de um lado para o outro, nunca esqueçamos onde tudo começou. Uma família é um navio que faz travessias de oceanos calmos e mares revoltos, mas nunca afunda, resiste, defende o seu território com a força de muitas gerações. E ali, a minha família do norte reunida para soprar um bolo de anos com um número tão redondo e inesperado. A minha tia Lurdes, sentada ao lado, com os seus 87 anos, a memória a ir e a vir, um eclipse contínuo, a resistir a tudo com o sentido de humor dela, dos filhos e dos netos, que carregam na genética essa maneira de agarrar nos problemas e acartá-los de queixo erguido. Cada uma das filhas construiu casa ao lado dela, uma minialdeia dentro da aldeia, para poderem ser mães da mãe que ela foi para elas. Esse laço estreito entre o que receberam e o que agora dão, uma rede de apoio para que nada falte a quem deu tudo. Quando uma mãe tem filhas que cuidam assim, é porque alguma coisa fez bem. Esteve lá quando era preciso, e ensinou que tomar conta é o mais íntimo gesto de amor que se pode ter por outra pessoa. Antigamente a minha tia Lurdes ligava-me várias vezes por mês, a perguntar quando é que eu ia lá comer o que ela havia de cozinhar. Agora lembra-se de mim umas vezes, outras pergunta quem sou, eu a ver onde a encontro no meio daquilo tudo, e o resto da família a fazê-la rir, esse curativo precioso. Os Nogueiras são gente rija, uma família de raízes humildes que lutou muito para hoje conseguir ser o que arriscou sonhar. Acho que nunca estive muito presente para a família que tenho, e tenho pena disso. Durante muito tempo punha as culpas nos meus pais, mas agora que cresci, ponho a culpa em mim. Sempre que saio de perto daquela parte da minha família, saio com convites para voltar, para ir comer um arroz de cabidela, para ir dormir na casa de um, ou almoçar na casa de outro. Sei que os convites são sinceros, porque foram feitos por gentes do norte.
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Só espero que, tal como aconteceu em 2019, os portugueses e as portuguesas punam severamente aqueles e aquelas que, cinicamente e com um total desrespeito pela dor e o sofrimento dos sobreviventes e dos familiares dos falecidos, assumem essas atitudes indignas e repulsivas.
Identificar todas as causas do grave acidente ocorrido no Ascensor da Glória, em Lisboa, na passada semana, é umas das melhores homenagens que podem ser feitas às vítimas.
O poder instituído terá ainda os seus devotos, mas o desastre na Calçada da Glória, terá reforçado, entretanto, a subversiva convicção de que, entre nós, lisboetas, demais compatriotas ou estrangeiros não têm nem como, nem em quem se fiar