Sábado – Pense por si

Bruno Nogueira
Bruno Nogueira Humorista
22 de maio de 2024 às 23:00

Temos sempre a noite

As noites são pequenos portos de abrigo que nos dão o sossego que o resto do dia não nos consegue oferecer. Dão-nos o descanso do telemóvel, das tarefas, de filhos que já não estão acordados para pedirem coisas, de todas as pessoas que já não estão lá a chamar por nós. São longas e bonitas, e têm um silêncio que reconforta.

O MUNDO É UMA SORTE que nos caiu nas mãos. Há tanta coisa bonita para onde olhar, tanta coisa por descobrir, tanto que está por fazer, e nós sempre a queixarmo-nos de barriga cheia. Queixamo-nos de ter tanto, porque não sabemos por onde escolher. Temos música, temos livros, temos a natureza inteira que ainda não destruímos, temos teatro, cinema, temos amores e mais uma mão cheia de coisas para sermos felizes. Temos muita sorte em estar aqui, neste momento do mundo, a poder devorar tudo o que ele tem para nos oferecer. Queixamo-nos porque nos fartamos do que damos como certo. Estamos fartos de já ter tudo o que é bom, e queremos ainda mais e melhor. Somos gananciosos perante a beleza de tudo o que nos rodeia, porque se já há isto tudo, o que é que nos estão a esconder que possa ser ainda melhor? Estar vivo é uma sorte que damos como certa, porque não fizemos nada para que acontecesse. Uma mãe deu-nos à luz, e quando demos por isso já estávamos a fazer parte. Acordamos e temos sol, céu, pessoas à nossa volta, podemos andar por aí fora e ir descobrir o que ainda não conhecemos. É muito bonito, isto de andar aqui. Há dias que se fazem difíceis, mas esses não são suficientes para estragar o muito que ainda há para nos encher os olhos e levar tudo cá para dentro, para o sítio onde guardamos as coisas que nos fazem felizes. Estamos vivos, e às vezes isso parece pouco. Como é que uma coisa tão grande pode parecer tão pequena? Tivemos a sorte da nossa vida em conseguirmos fazer parte de uma coisa tão grande e bela como a que nos está a acontecer, e não conseguir ver isso é um mal tão grande como a própria vida. Quando tudo parece ruir, há muito por onde agarrar. Estou sempre a ser salvo de mim próprio. A maior parte das vezes fui salvo pela inspiração dos outros, quando achava que o dia estava condenado a não ter redenção. Somos uns sortudos por termos tantas maneiras de estarmos de pé, e outras tantas de nos voltarmos a levantar. Há dias que podem virar-se do avesso sem nos darmos conta, e quando nos apercebemos já estamos afundados em preocupações, dúvidas, temores, nuvens que se formam em cima de nós mesmos quando dizemos a nós próprios que não vale a pena ficar assim, que vai tudo passar. Mas mesmo nesses dias, temos a sorte de estar guardado para o fim o melhor que há neles. As horas que um dia tem, trazem qualidades diferentes com elas. Servem propósitos distintos, e embora os dias sejam longos, há momentos que parecem esticar mais do que outros. Horas que se desdobram em muitas, até parecerem um dia inteiro ali concentrado. É aí, que sem que tenhamos que fazer nada para isso, chegam as noites. As noites são pequenos portos de abrigo que nos dão o sossego que o resto do dia não nos consegue oferecer. Dão-nos o descanso do telemóvel, das tarefas, de filhos que já não estão acordados para pedirem coisas, de todas as pessoas que já não estão lá a chamar por nós. São longas e bonitas, e têm um silêncio que reconforta, por sabermos que, apesar de todo o ruído do dia, há ali naquele cantinho escuro uma paz com a qual nenhuma outra hora consegue competir. É discreta, e chega como uma promessa de abraço, uma paz para o ruído que se fez ouvir; vem cheia de ideias, de suspeitas de futuro. Podemos finalmente desmultiplicar tudo, e deixar que o corpo tenha o descanso merecido.

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