Sábado – Pense por si

Bruno Nogueira
Bruno Nogueira Humorista
18 de janeiro de 2024 às 08:00

A memória e a criação

Estamos sempre a ser traídos pelos fragmentos que nos faltam do passado, e vamos acrescentando remendos até conseguirmos que aquele conjunto de imagens e sons que ficaram gravados na cabeça, sejam enfim uma memória nossa. Mas chegados a esse sítio, já não é uma memória, é o que resta dela.

DAS TANTAS COISAS que me lembro, há muitas que não sei se aconteceram, ou se as quis guardar assim. A memória é uma palavra que se transforma constantemente, um lugar estranho onde a ficção e a realidade se cruzam, e onde podemos ficar perdidos sem saber onde pertence o quê. Há uma linha muito fina – quase imperceptível – que separa um acontecimento da forma como o gravamos em nós. O tempo faz o seu trabalho, e quando contamos uma história nossa, estamos muitas vezes a contar o resultado de como nos lembramos do que aconteceu, e nem sempre de como terá acontecido. Será que nem em nós podemos confiar? Muitas vezes romanceamos o passado, para que a memória se ajuste a nós, e não o contrário. As memórias que tenho, não sei se são minhas, ou se estão cá das muitas vezes que as ouvi. Lembro-me de ser muito pequenino, abrir a porta do carro, e ir a correr em direcção a um precipício. Lá em baixo um fim que quase não se via. Acho que me lembro do pânico no olhar dos meus pais por eu ter escapado de uma tragédia sem ter feito nada por isso a não ser parar no momento certo, sabe-se lá porquê. Lembro-me de uma vez ter aparecido todo encharcado na sala da casa de uns amigos dos meus pais. Devia ter uns 5 anos e tinha acabado de sair sozinho da piscina onde tinha caído, sem saber nadar. Os meus pais contaram-me esta história muitas vezes, e à conta de a terem contado essas vezes todas já consigo ver a piscina, a sala, a cara deles, a dos amigos, o cheiro que estava naquela sala. Não sei se foram eles que me contaram a memória que eu achava que era minha, ou se fui eu que me lembrei dela e a confirmei ao ouvi-los. Aquilo que a nossa cabeça arquitecta até dar fechado como memória é uma estrada nublada onde nem sempre se decifram os contornos do que a rodeia. Estamos sempre a ser traídos pelos fragmentos que nos faltam do passado, e vamos acrescentando remendos até conseguirmos que aquele conjunto de imagens e sons que ficaram gravados na cabeça, sejam enfim uma memória nossa. Mas chegados a esse sítio, já não é uma memória, é o que resta dela. Tenho muitas memórias da minha avó, mas pergunto-me se são todas minhas.

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