Sábado – Pense por si

Sérgio Pratas
Sérgio Pratas
18 de maio de 2022 às 18:03

Democracias de pensamento único

Este clima de intolerância, de ataque cego e carregado de preconceitos, de pensamento único, é claramente corrosivo para a democracia (e não só). E isso deve fazer-nos pensar. 

A invasão da Ucrânia é atualmente o tema em destaque em diversos fóruns – e em particular na comunicação social. Muito se tem dito e analisado – com a intervenção de especialistas e não especialistas. Não vou por isso discutir a invasão, a guerra e o massacre do povo ucraniano (as suas causas, consequências, riscos, desenvolvimentos). Há quem o possa fazer muito melhor do que eu. O meu foco será outro: apresentar um outro olhar sobre a própria discussão deste assunto no espaço público (ou seja, discutir a discussão).   

E há três observações que gostaria de partilhar (e colocar à consideração do leitor). 

Primeira. Sejamos claros: o poder pode ser exercido por duas vias principais: ou pela força (poder coercivo); ou por via da persuasão, que acontece quando as pessoas e as instituições influentes fazem com que ajamos e pensemos de um modo diferente do que faríamos sem a sua intervenção. E isso pode acontecer por vários meios: discursos motivacionais, narrativas ideológicas do mundo, influência nos meios de comunicação, na universidade, etc. É por isso que é tão importante haver liberdade de imprensa e uma comunicação social forte, livre e capaz de exercer a sua missão com rigor e transparência. Trazer o outro lado. Desmontar a manipulação. Ouvir todas as partes. Mas aquilo a que temos vindo a assistir (com exceções, naturalmente) é à erosão desse papel, dos mais rigorosos padrões éticos, por vezes do próprio contraditório. Pergunto: até que ponto essa erosão está a prejudicar a discussão e a nossa perceção sobre o que está a acontecer?  

Segunda. Como já tem sido dito, numa guerra a primeira vítima é sempre a verdade. E neste caso não é diferente. Temos assistido a diversas manobras de ambas as partes para captar aderentes ou simpatizantes. E à difusão de mentiras sobre os acontecimentos. Neste quadro, é fundamental que a comunicação social tenha particulares cautelas e procure investigar por meios próprios – para não ser simples caixa de ressonância dessas manobras. E que cada um de nós procure estar atento e procure analisar com cuidado (e até alguma desconfiança) os vários posicionamentos e argumentos apresentados. 

Terceira. Numa análise mais cuidada das várias reportagens e comentários sobre o tema, há um traço que é comum à grande maioria: nesta guerra há um lado mau e culpado e um lado bom e heróico. Ideia que até compreendo. É o povo ucraniano que está no centro do furação. O que não compreendo é o ataque brutal, violento e irracional a toda e qualquer narrativa que se desvie desse padrão. Quem questiona esta verdade única e absoluta é imediatamente rotulado de putinista, ou pior – é o caso de Miguel Sousa Tavares, ou Boaventura de Sousa Santos, ou até de vários militares que têm participado em debates televisivos. Só para dar alguns exemplos. E há o caso do PCP. Concorde-se ou não, o PCP tem colocado questões essenciais, que têm passado ao lado deste debate; e, para além disso, estão por desmentir os factos que invoca. 

Um dos pilares da democracia é a liberdade de expressão e outro a existência de fontes alternativas de informação. Como dizia Robert Dahl, um dos principais teóricos da democracia, "os cidadãos têm o direito de se expressar, sem perigo de castigo severo, sobre questões políticas amplamente definidas, incluindo críticas a dirigentes, ao governo, ao regime, à ordem socioeconómica e à ideologia dominante". Este clima de intolerância, de ataque cego e carregado de preconceitos, de pensamento único, é claramente corrosivo para a democracia (e não só). E isso deve fazer-nos pensar. 

Sérgio Pratas

Diretor do Observatório do Associativismo Popular e da revista Análise Associativa

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