Greve geral: Quando o direito dos outros entra pela nossa casa dentro
Uns pais revoltavam-se porque a greve geral deixou os filhos sem aulas. Outros defendiam que a greve é um direito constitucional. Percebi que estávamos a debater um dos pilares mais sensíveis das democracias modernas: o conflito entre direitos fundamentais.
Hoje, o grupo de WhatsApp dos pais da turma da minha filha transformou-se numa espécie de ágora digital. Em minutos, surgiram dezenas de mensagens, emojis irritados, links para notícias e desabafos apressados. Uns pais revoltavam-se porque a greve geral os deixou sem aulas e sem alternativa para deixarem os filhos.
Outros defendiam, com a mesma veemência, que a greve é um direito constitucional que existe precisamente para ser usado quando o desconforto se torna inevitável. E no meio deste caos virtual, percebi que estávamos a debater, sem dar por isso, um dos pilares mais sensíveis das democracias modernas: o conflito entre direitos fundamentais quando eles se chocam com a nossa rotina diária.
Porque a verdade é esta: nenhuma greve se faz sem incómodo. E se não causa incómodo, não é greve , é um pedido formal, simpático e inofensivo, destinado a ser ignorado.
Os pais mais críticos argumentavam que “não é justo” que trabalhadores exerçam o seu direito à greve quando isso prejudica quem nada tem a ver com o conflito laboral. Compreendo o argumento: numa sociedade profundamente dependente das escolas como espaço educativo, mas também de apoio às famílias, o fecho inesperado de uma sala de aula pode desorganizar por completo um dia de trabalho, uma logística familiar, uma reunião importante, ou até um rendimento mensal.
Mas o problema é este: o direito à greve não existe para proteger a conveniência dos demais, existe para proteger trabalhadores quando outros meios falharam. A Constituição da República Portuguesa é clara: o artigo 57.º consagra a greve como um direito fundamental, irrenunciável, expressão de autonomia coletiva e instrumento de pressão legítima num Estado de Direito. A greve não é um privilégio dado aos trabalhadores, é uma garantia que lhes permite equilibrar relações de poder naturalmente assimétricas.
E antes de alguém dizer “mas os alunos nada têm a ver com isto”, é importante lembrar que quase nunca é possível exercer direitos fundamentais sem que eles colidam com outros interesses legítimos. A liberdade de manifestação causa trânsito; o direito de reunião fecha ruas; a liberdade de imprensa incomoda reputações; o direito ao voto cria filas e interrompe rotinas. E, no entanto, ninguém questiona a necessidade destas perturbações. Fazem parte da vida democrática. A greve como instrumento coletivo que beneficia mesmo quem discorda dela
Um dos pais escreveu no grupo: “Se querem protestar, tudo bem, mas deviam arranjar uma forma de não prejudicar ninguém.” E aqui entramos na impossibilidade estrutural da greve. A greve só tem força porque suspende temporariamente a normalidade. E quando direitos coletivos estão em causa, salários dignos, condições de trabalho, carreiras justas, proteção no emprego, os benefícios alcançados não ficam apenas para quem fez a greve. Alargam-se ao sistema, às famílias, à qualidade dos serviços públicos.
A propósito, alguém recordou no grupo que muitos dos direitos laborais de que hoje usufruímos, férias pagas, 13.º mês, limites de horário, subsídio de desemprego, proteção da parentalidade, foram conquistados com greves que certamente irritaram muitos pais, avós e bisavós da mesma maneira que a greve de hoje irritou alguns de nós.
É incómodo? Sim. É inconveniente? Claro.
Mas é uma das formas mais eficazes de mudar políticas laborais e garantir estabilidade social no longo prazo.
Além da Constituição, a Lei da Greve (Lei n.º 65/77) estabelece que a greve é um direito individual com efeitos coletivos; Nenhum trabalhador pode ser penalizado por exercê-la; O empregador não pode substituir grevistas para neutralizar os efeitos da greve; Serviços mínimos só podem ser impostos em setores essenciais como a energia, saúde, forças de segurança, e mesmo assim com critérios muito estritos.
A educação não é considerada constitucionalmente um serviço essencial ao ponto de impedir a greve dos trabalhadores, precisamente porque o seu impacto na comunidade é reconhecido mas não absoluto. E ainda bem: se começássemos a considerar tudo “essencial”, o direito à greve desapareceria por via administrativa.
O conflito que explodiu no WhatsApp é, afinal, um conflito artificial. Os pais não são inimigos dos trabalhadores que hoje fizeram greve. E os trabalhadores não são indiferentes às dificuldades que provocam. Na verdade, ambos querem a mesma coisa: uma escola funcional, digna, estável e capaz de educar bem os nossos filhos.
Se hoje não há aulas porque os trabalhadores pararam, não é por capricho: é porque estão a tentar resolver problemas que afetam diretamente a qualidade da escola. E isso interessa-nos a todos, sobretudo às crianças.
A democracia mede-se pelo desconforto que aceitamos para que outros exerçam direitos
Ao final do dia, o que a discussão no WhatsApp mostrou foi isto: A democracia não é um sistema feito para nos facilitar a vida. É um sistema feito para garantir liberdades, mesmo quando essas liberdades nos complicam o dia.
Se aceitarmos apenas os direitos que não nos incomodam, deixamos de viver numa democracia, passamos a viver numa espécie de condomínio emocional onde cada um exige conforto, mas ninguém assume sacrifícios.
E talvez seja essa a lição mais importante que pude ensinar à minha filha hoje: que viver numa sociedade livre implica aceitar impactos pessoais quando os outros exercem direitos que também são nossos.
Porque amanhã poderá ser ela , ou qualquer um de nós , a precisar que a sociedade suporte o incómodo em nome da justiça.
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