Gaza, o comboio e o vazio existencial
“S” sentiu que aquele era o instante de glória que esperava. Subiu a uma carruagem, ergueu os braços em triunfo e, no segundo seguinte, o choque elétrico atravessou-lhe o corpo. Os camaradas de protesto, os mesmos que minutos antes gritavam palavras de ordem sobre solidariedade e justiça, recuaram. Uns fugiram, outros filmaram.
“S”, vamos tratá-lo assim. Tem 22 anos e é filho de um grande amigo meu. É um rapaz inteligente, curioso, mas também inquieto. Nos últimos tempos, a adrenalina dos protestos tornou-se o seu vício. Começou com as manifestações dos Climáxico, seguiu-se o apoio a causas pró-Palestina e, de repente, o protesto passou a ser a forma como dava sentido aos seus dias. A causa? Quase irrelevante. O importante era o desafio à autoridade, o ritual do keffiyeh ao pescoço, as palavras de ordem gritadas como quem exorciza a banalidade.
Há, neste novo ativismo urbano, algo de performativo e superficial. É o romantismo reciclado dos velhos movimentos libertários, mas sem o estofo intelectual nem o risco moral. É a rebeldia sem causa, o espetáculo sem guião. “S” e os seus companheiros são filhos de uma era em que o protesto é sobretudo uma selfie coletiva, um palco efémero para quem quer sentir-se vivo num mundo anestesiado. O fóssil, a Palestina, Gaza, o Hamas ou Israel são apenas palavras-símbolo, arquétipos de uma luta que já não compreendem, mas cuja estética alimenta a fantasia da revolta.
No passado dia 4 de outubro, a manifestação junto à estação do Rossio pretendia denunciar a detenção de quatro portugueses que integravam a chamada “flotilha humanitária” com destino a Gaza. Corria morna. Faltava o punch, a imagem forte, o momento que pudesse viralizar nas redes. A “malta”, como dizem, queria mais. E quando alguém lançou o desafio de invadir os comboios, de se barricarem dentro deles, “S” sentiu que aquele era o instante de glória que esperava.
Subiu a uma carruagem, ergueu os braços em triunfo e, no segundo seguinte, o choque elétrico atravessou-lhe o corpo. Caiu no chão, ardendo em dor e pânico. Consciente, com grande parte do corpo queimado, pediu ajuda. Mas ninguém se aproximou. Os camaradas de protesto, os mesmos que minutos antes gritavam palavras de ordem sobre solidariedade e justiça, recuaram. Uns fugiram, outros filmaram. Só uma médica, que por acaso se encontrava no local, teve o instinto e a coragem de chamar o INEM e tentar estabilizá-lo até à chegada da ambulância.
Hoje, “S” está em coma, com prognóstico reservado. O corpo marcado por queimaduras profundas, a vida suspensa por fios. E no entanto, o silêncio é ensurdecedor. Dos seus companheiros de luta, os que se dizem defensores da vida, da dignidade e dos oprimidos, nem uma visita, nem um gesto, nem uma palavra pública. Nada. O mesmo silêncio cúmplice que impera quando as ações correm mal, quando a realidade impõe um preço à encenação.
Afinal, a solidariedade entre muitos destes ativistas é tão vazia como os porões dos barcos da flotilha dita humanitária. A generosidade é de cartaz, a empatia dura o tempo de um “post”. O que sobra é o ego inflamado, o culto do gesto extremo, o prazer narcísico de se sentir parte de uma revolução de hashtags.
O caso de “S” revela o que há de mais trágico neste tipo de militância: a instrumentalização da juventude por ideologias que já não libertam, apenas alienam. Estes movimentos de fachada, travestidos de causas humanitárias, atraem jovens em busca de sentido, de pertença, de propósito. Mas dão-lhes apenas slogans e o falso conforto da indignação partilhada. São comunidades de afetos instantâneos, incapazes de sustentar o verdadeiro valor da solidariedade quando a dor é real.
Na ausência de líderes com ética e de pensamento crítico, o protesto transforma-se em ritual tribal. Não há reflexão, apenas pertença. Não há empatia, apenas identidade. A raiva é o cimento que os une. A luta, um jogo de encenações. E quando um deles cai, os outros seguem caminho, porque a vida real, com as suas consequências e responsabilidades, é demasiado pesada para quem vive de abstrações.
Enquanto “S” luta pela vida, os seus antigos camaradas encontraram outra forma de se entreter: queimam livros nas ruas, invocando a liberdade contra o “imperialismo cultural”. O gesto é simbólico e terrivelmente revelador. Queimar livros é negar o pensamento, é rejeitar o diálogo, é perpetuar o vazio. O mesmo vazio que consome esta geração de rebeldes sem rumo, que confunde moralidade com indignação, consciência com ruído.
Não se trata de condenar a juventude, pelo contrário. É urgente resgatar o seu idealismo do abismo da manipulação. “S” podia ter sido qualquer um dos nossos filhos, alunos, vizinhos. Cresceu num tempo que lhes prometeu tudo e lhes deu muito pouco. Acredita que protestar é existir, que o mundo precisa de ser salvo, mas não percebeu ainda que a salvação não se conquista com selfies ou vandalismo. Conquista-se com compromisso, conhecimento e coragem moral.
O que aconteceu no Rossio não é apenas um acidente trágico, é um espelho. Mostra-nos o preço do vazio ideológico e do narcisismo militante. Mostra-nos como a adrenalina do protesto substituiu o sentido da responsabilidade, e como a solidariedade deixou de ser gesto humano para se tornar mero adereço político.
Se “S” acordar do coma, e Deus queira que sim, talvez descubra que a verdadeira coragem não está em desafiar a autoridade, mas em desafiar a superficialidade. Talvez perceba que a verdadeira rebeldia é pensar por si próprio, recusar o dogma e o rebanho. Talvez, por fim, compreenda que a luta mais difícil é contra o conformismo de quem protesta sem saber porquê.
Porque o mundo precisa de jovens que sonhem, sim, mas também que pensem, que sintam, que se responsabilizem. Jovens que saibam que solidariedade não é um post no Instagram, mas a mão estendida quando o outro cai.
E “S” caiu. Só espero que o país, e a geração que o aplaudiu do outro lado do ecrã, aprendam alguma coisa com isso.
Gaza, o comboio e o vazio existencial
“S” sentiu que aquele era o instante de glória que esperava. Subiu a uma carruagem, ergueu os braços em triunfo e, no segundo seguinte, o choque elétrico atravessou-lhe o corpo. Os camaradas de protesto, os mesmos que minutos antes gritavam palavras de ordem sobre solidariedade e justiça, recuaram. Uns fugiram, outros filmaram.
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