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Paulo Lona
Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
09 de dezembro de 2025 às 07:00

A desinformação que fere a Justiça

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Edição de 2 a 8 de dezembro

Fala‑se muito do Estado de Direito, mas pouco se pratica o respeito pelas suas premissas básicas. A presunção de inocência vale para todos — também para os magistrados.

De tempos a tempos, regressa à praça pública o mesmo discurso: uma fuga de informação num processo mediático com escutas telefónicas e, logo a seguir, um coro de críticas ao Ministério Público. Uns por ignorância, outros por conveniência, constroem-se narrativas que transformam presunções em certezas e dúvidas em acusações.

Não faltam vozes prontas a insinuar que o Ministério Público é o responsável direto por cada notícia publicada sobre processos em segredo de justiça. Multiplicam-se as comparações absurdas entre situações sem paralelo e os julgamentos de intenção tornam-se moeda corrente. Mas os factos — esses teimam em ser ignorados.

Uma auditoria realizada pelo Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça João Rato revelou que as violações do segredo de justiça ocorrem em cerca de 1% dos processos onde ele existe. E, ainda assim, a regra é hoje a publicidade, não o segredo. Mesmo que fossem 0,1%, seria condenável, mas não representa uma prática sistémica. Fingir o contrário é alimentar o populismo judiciário: transformar casos residuais em prova de uma conspiração.

Os dados são claros: as fugas surgem sobretudo em fases de buscas, interrogatórios ou comunicação pública. Momentos em que os processos passam a envolver várias entidades externas ao Ministério Público. E, no entanto, é sempre a este que apontam o dedo. A lógica é simples — se há fuga, há culpa; se há notícia, o Ministério Público é o vilão da história. A presunção de inocência, invocada à exaustão para os arguidos, parece suspender-se completamente quando em causa estão os magistrados.

Mas onde estão as provas? Onde estão as investigações concluídas que sustentem essas imputações?

As mesmas vozes que clamam indignadas pela violação do segredo de justiça não hesitam, sem indício algum, em acusar quem tem o dever de o proteger. É uma contradição gritante — e profundamente perigosa para o Estado de Direito.

Há, subjacente a esta estratégia, uma tentativa de inverter papéis: quem investiga passa a suspeito; quem viola o segredo transforma-se em vítima. E, discretamente, instala-se o argumento conveniente de que o Ministério Público é um poder insuportavelmente incómodo. O objetivo é evidente: criar terreno favorável a reformas legislativas que subtraiam autonomia à justiça sob o pretexto de “reforçar a transparência”.

Pergunte-se, por um momento: o que teria a ganhar um magistrado do Ministério Público ao divulgar informações que comprometem a sua própria investigação? A resposta é óbvia — nada. O segredo de justiça existe para proteger o inquérito, não para favorecer interesses ocultos. Mas essa obviedade parece incompatível com o espetáculo mediático e o conforto das teorias simplistas.

É altura de olhar para o essencial. Quem tem acesso aos processos? Magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, oficiais de justiça, polícias, advogados e assistentes processuais. A multiplicidade de intervenientes torna impossível apontar o dedo de forma automática. Fazer isso é pura manipulação política.

Fala-se muito do Estado de Direito, mas pouco se pratica o respeito pelas suas premissas básicas. A presunção de inocência vale para todos — também para os magistrados. Acusá-los sem provas é corroer a justiça pelas fundações. E, como a história recente de diversos países demonstra, essa erosão começa sempre com o mesmo discurso: a necessidade de “controlar” uma justiça que “abusa do seu poder”.

Basta olhar para a Polónia, Hungria, Israel ou Turquia para perceber o preço desse caminho. Quando o poder político subjuga o judicial, não nasce transparência — nasce medo. O controlo político da justiça é o primeiro sintoma de um Estado de Direito em colapso.

Desconfiar do Ministério Público tornou-se moda. Defender-lhe a autonomia, um ato de resistência.

Mas a verdade é que sem um Ministério Público livre e sem uma justiça independente não há democracia plena — há apenas aparência de controlo e silenciamento disfarçado de equilíbrio institucional.

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