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Paula Cordeiro Especialista em comunicação
25.08.2025

Insustentável é: não querer saber

Um pedido simples a um modelo de IA tende a consumir mais eletricidade do que uma pesquisa no Google.

Vida digital. Mundo digital. Sociedade digital. Ainda não nos habituámos ao que estas designações significam e já precisamos de novas definições. A Inteligência Artificial estrutura o nosso quotidiano e molda o nosso planeta. O brilho dos ecrãs e o facilitismo de um e-mail escrito em poucos segundos, ou a imagem perfeita para o meme, transformaram a Inteligência Artificial na arquitectura invisível que organiza a internet, a economia criativa e boa parte da nossa vida digital. Porque essa interferência ultrapassou limites, a infraestrutura que protege cerca de 20% da web decidiu bloquear, por defeito, os bots de IA e criar um sistema de licenciamento: quem quiser usar o nosso conteúdo para treinar modelos terá de pedir autorização e pagar. A Cloudflare deu o primeiro passo ao limitar o scraping automatizado, incluindo de órgãos de comunicação social. Durante anos, textos, imagens e áudio circularam nos bastidores livremente para alimentar modelos que respondem gratuitamente (muitas vezes, muito mal), dando a sensação de eficiência e fomentando o comodismo. Esta é uma mudança técnica, mas também económica: abre novos modelos de negócio e obriga a negociar direitos no século XXI.

Se a IA faz por mim em poucos segundos, eu não preciso de fazer. Verdade. Mas arriscamos a ser como o casal de influencers que não embarcou em direcção a uma viagem de sonho porque perguntou ao Chat GPT se precisavam de visto para aquele destino. O exemplo é caricato, mas sintomático: se delegamos tudo, começamos a perder o essencial, principalmente o raciocínio e sentido crítico, imaginação e criatividade, que tanto nos orgulhamos de nos diferenciar no reino animal e, até, da Inteligência Artificial. 

A literacia digital, tão urgente quanto necessária, ampliou o seu espectro. Precisamos de uma literacia digital que inclua o que ainda não sabemos sobre estes modelos, a sua natureza, características e impacto. Porque o impacto é inegável e precisa ser conhecido. Em média, um pedido simples a um modelo de IA tende a consumir mais eletricidade do que uma pesquisa no Google; estimativas recentes sugerem valores várias vezes superiores: gerar cerca de 100 palavras pode equivaler a manter aproximadamente 14 lâmpadas LED acesas durante uma hora. Pouco? Multiplique-se por milhões de pedidos diários. E se 100 pessoas pedirem 100 palavras? De repente, a soma deixa de ser detalhe e passa a ser sistema. São 10 000 palavras ou 140 000 lâmpadas. Centros de dados consomem água em grande escala para arrefecimento (milhões de litros por dia) e a produção elétrica continua, em muitos mercados, dependente de combustíveis fósseis, com emissões associadas. Também aqui vale a pergunta simples antes de cada pedido: preciso mesmo disto? Poderei lá chegar de outra forma?

Conseguimos viver sem IA para as coisas básicas da vida, como foi que, de repente, tudo depende do Chat GPT e outros modelos? A ânsia de fazer cada vez mais gastando cada vez menos coloca a IA no centro das operações, automatizando tarefas, reconfigurando  (até aniquilando) profissões, pressionando, ao mesmo tempo, o ar que respiramos e a água que bebemos. Valerá a pena? Só se mantiver o melhor de nós, ampliando limitações sem substituir autoria, sentido crítico e responsabilidade. Insustentável é não querer saber. Cada novo pedido é um voto no tipo de futuro que queremos. Se a estrutura de zeros e uns que nos alimenta é invisível, a escolha de como a usamos, essa, não é.

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