Sábado – Pense por si

Mariana Sottomayor
Mariana Sottomayor
21 de abril de 2020 às 19:14

Os números da pandemia no Norte de Portugal e na Europa – uma reflexão

Vivemos tempos em que mais do que nunca é verdadeira a afirmação da notável Marie Curie, prémio Nobel da Física e da Química: “Nada na vida é para ser temido, apenas para ser compreendido. Agora é tempo de compreender mais, para que possamos temer menos.”

Para "compreender mais" a assimetria dos números da pandemia no território nacional, e "temer menos" o seu significado, segue abaixo uma explicação lógica altamente provável. O motivo pelo qual a região Norte apresenta valores muito mais elevados do que o resto do país, não deverá ser muito diferente do motivo pelo qual o Norte de Itália, Madrid, Paris ou Nova Iorque são tristemente célebres neste momento de pandemia. O que pode explicar a explosão de casos positivos comum a todos estes locais? O facto de terem sido os primeiros dos respetivos países onde o COVID-19 chegou, indetetado, e se alastrou de forma silenciosa e célere como é apanágio da sua elevadíssima infecciosidade. Quando as autoridades sanitárias e governos respetivos acordaram para a realidade, já havia uma disseminação elevada na população, tornando-se impossível dominar o aumento exponencial de casos. Acontece que o aumento exponencial cava um fosso crescente de casos entre os locais aos quais o vírus chegou primeiro, relativamente àqueles em que chegou mais tarde.

Trocado em patacas, com recurso a um exemplo hipotético simples, para se perceber bem: considerando uma taxa de contágio de 2, um local A ao qual chega um indivíduo contaminado vai duplicar o seu número de casos em cada ciclo de contágio; no final de 5 ciclos haverá 25 = 32 positivos no local A; se só nesse momento chegar ao local B um indivíduo contaminado, no final dos 5 ciclos em que o local B terá 32 positivos, o local A já terá 210 = 1024 casos. E assim sucessivamente. Os valores dos dois locais só começarão a aproximar-se quando a taxa de contágio descer abaixo de 1. Até lá, o fosso não cessará de crescer. E a percentagem de novos casos diários permanecerá tendencialmente mais alta no local A, mesmo que a taxa de contágio desça, porque o que estará a aumentar é a percentagem de casos detetados sobre casos reais. Pois, invariavelmente, os casos reais já vão alto na curva exponencial quando começa a ser feita deteção nos locais onde a pandemia chega primeiro.

A conclusão deste exercício é que a região Norte de Portugal alinha com o Norte desenvolvido da Itália e as capitais de um grande número de países, mercê seguramente de uma maior mobilidade dos seus habitantes. Por isso, poupe-se o país a explicações dúbias sobre o elevado número de contaminados no Norte. Ainda mais quando a replicação silenciosa da pandemia nesta região resulta da incompetência do Governo e DGS, por sinal externos ao Norte. Porque foi o facto de o Governo ter poupado na primeira compra de testes e a DGS ter definido critérios rígidos de testagem  incluindo sintomas + link epidemiológico, que determinou que o COVID-19 contaminasse silenciosamente a população nortenha, cavando o fosso exponencial. Isto num momento em que era já claríssimo como água, para todos, o poder de disseminação e virulência da doença. Valha-nos isso, porque assim o país pôde pressionar Governo e DGS a fazer o que tardavam em fazer.

E valha-nos o facto de termos tido a extraordinária sorte de o COVID-19 ter chegado a Portugal muito mais tarde do que a Espanha ou a Itália. Sim, porque o exercício exposto acima explica também o nosso relativo "sucesso" – começamos a tomar medidas e a descer a taxa de contágio muito mais cedo na nossa curva exponencial, quando ainda tínhamos um número relativamente pequeno de ciclos silenciosos.

E explica também, em grande parte, a suposta taxa de mortalidade elevadíssima da Espanha e da Itália. Fruto de muitos ciclos de disseminação indetetada, o que vemos nesses países é a ponta do iceberg de um número de casos muito maior, em que a parte visível é apenas a dos casos mais graves. De facto, uma estimativa do Imperial College publicada recentemente na SÁBADO prevê a possibilidade de Espanha ter já 7 milhões de infetados. Pelo contrário, a Alemanha apresenta uma taxa de mortalidade aparente muito mais baixa porque os casos positivos detetados correspondem a uma parte muito maior do iceberg, devido à testagem massiva que este país faz. O que significa também que este país está, na realidade, a ter uma progressão muitíssimo mais lenta da doença do que os seus países vizinhos.

Porquê? Porque caladinhos como um rato (ou não, e isso gostava de saber) os alemães começaram a testar, isolar e confinar muito mais cedo, limitando a tal disseminação camuflada. Silêncio indesculpável de uma, ou irresponsabilidade criminosa de outros, o certo é que a Alemanha poderá vir a erguer-se desta pandemia mais forte do que nunca, aprofundando um outro fosso já conhecido.

Nota: Agradeço aos alunos da Tuna da FCUP por terem evocado a citação de Marie Curie, tão cheia de significado neste tempo de pandemia.

Bióloga, Professora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto

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