Sábado – Pense por si

Margarida Reis
Margarida Reis Secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
27 de dezembro de 2025 às 12:00

Natal, Justiça e o dever de assegurar que o Estado não abandona ninguém

O Natal tem uma forma particular de revelar o que, durante o ano, tantas vezes passa despercebido. Quando o país abranda, quando as pressões do imediato recuam e as rotinas perdem ritmo, tornamo-nos mais atentos às fragilidades que atravessam a vida das pessoas: famílias que dependem de prestações sociais, idosos cujo rendimento não chega ao fim do mês, contribuintes confrontados com responsabilidades fiscais que geram preocupação e incerteza, cidadãos que aguardam uma decisão administrativa capaz de desbloquear o seu quotidiano. É nesta época do ano que percebemos com maior nitidez que a justiça fiscal e administrativa não é uma abstração. É parte da vida concreta de cada um.

A verdade é simples: o funcionamento da justiça mede-se também pelo modo como o Estado trata quem está em situação de maior vulnerabilidade. E nisso, o Natal não é apenas um feriado religioso ou cultural. É um instante de recalibração ética, um momento em que o país olha para si e pergunta se está, de facto, a cumprir o compromisso fundamental que a Constituição inscreve, de não deixar ninguém para trás.

É nos tribunais fiscais e administrativos que esse compromisso constitucional ganha expressão concreta. Aqui decide-se, muitas vezes, o acesso a prestações sociais que substituem rendimentos perdidos; corrige-se a contabilidade de vidas inteiras quando houve erro na carreira contributiva; evita-se que uma penhora excessiva retire a um agregado aquilo que a lei chama, com razão, o “mínimo de existência”. Estas decisões não fazem manchetes, mas fazem diferença. São decisões técnicas e discretas, mas com repercussões significativas na vida das pessoas. São decisões que protegem a dignidade.

A crise económica dos últimos anos tornou tudo isto mais visível. A inflação, o aumento do custo de vida e o peso crescente de encargos essenciais criaram zonas de fragilidade que atravessam classes sociais e gerações. O Estado tem de responder, e a justiça administrativa e fiscal é uma das expressões dessa resposta. Não substitui políticas públicas, mas garante que, quando elas falham ou tardam, existe um lugar onde a verdade dos factos ainda conta e onde a lei ainda protege.

O Natal lembra-nos também que a justiça não é apenas decisão: é tempo. Para quem espera por uma pensão corretamente calculada, por um complemento solidário que foi indeferido, ou pela revisão de uma decisão fiscal passível de evitar o colapso de uma pequena empresa familiar, cada semana tem peso real. A celeridade não é um luxo; é parte da própria ideia de justiça. Todas as reformas estruturais deveriam ter isto em conta: quando a justiça chega tarde, chega ferida. Quando chega a tempo, repara.

Ao refletir sobre isto, compreendemos melhor o lugar dos tribunais nesta época do ano. Não é um lugar simbólico; é um lugar de compromisso. É aqui que se garante que a legalidade não é indiferente à vida concreta.

Tudo isto, porém, pressupõe uma condição essencial: que os tribunais tenham meios para cumprir a função que a Constituição lhes confia. A justiça não se faz apenas de princípios; faz-se de pessoas. A insuficiência de juízes e a incompletude dos quadros comprometem a estabilidade necessária, fazendo com que o tempo da justiça se dilate até esvaziar as decisões do seu efeito útil.

Nos tribunais administrativos e fiscais, esta carência é hoje evidente. E, apesar dos compromissos publicamente assumidos quanto ao reforço dos quadros, designadamente até ao final do presente ano, a realidade permanece inalterada. No Tribunal Central Administrativo Sul, instância de recurso que, em muitos casos, representa a última possibilidade de obtenção de justiça, a insuficiência crónica de juízes - nunca plenamente suprida - conduziu a níveis de pendência incompatíveis com uma tutela jurisdicional efetiva. Quando os processos se acumulam, não é apenas o cidadão que espera, mas o próprio Estado de direito que se fragiliza.

O atraso sistemático compromete a eficácia da tutela jurisdicional, ao suspender a reparação de ilegalidades, e adiando a responsabilização da Administração quando ela se impõe. A justiça tardia não é neutra.

O Natal recorda-nos que nenhuma comunidade se mede apenas pelas intenções que proclama, mas pelas condições concretas que cria para proteger os mais vulneráveis. Também na justiça é assim. Só haverá verdadeiramente Natal na justiça administrativa e fiscal se o Governo assumir, sem mais adiamentos, a responsabilidade de lhes dar os meios humanos indispensáveis para que possam decidir a tempo - e decidir bem.

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