Abusadores da mama
Para a ministra do Trabalho, o combate a quem se serve da generosidade da lei podia começar em casa.
Portugueses, a hora é grave: há bebés a mamar à conta do patronato até irem para a escola (ao menos, vá lá, não até irem para a tropa). Tudo para mães desviantes abocanharem uma redução de horário no trabalho. Ao que chegámos, compatriotas. Por isso é que isto está como está. Cuspam no chão, em repugnância. Felizmente, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social está à coca. "Infelizmente, temos conhecimento de muitas práticas em que, de facto, as crianças parece que continuam a ser amamentadas para dar à trabalhadora um horário reduzido, que é duas horas por dia que o empregador paga, até andarem na escola primária", disse em entrevista ao JN e TSF, no último domingo.
Agora, acabou-se a mama. O Governo propõe-se impor que o atestado médico para aceder à redução de horário, hoje só necessário a partir do primeiro ano de vida do bebé, passe a ser obrigatório desde a nascença e renovado a cada seis meses. O resultado prático, previsível, será diminuir o acesso a este direito, ou impedi-lo de todo. “Vai claramente afetar a sociedade mais vulnerável a nível económico, como é o caso das mães solteiras e vai empobrecer as famílias”, disse à SÁBADO Sara do Vale, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto. Faz hoje mesmo um ano e oito meses, o Estado português criou a Comissão para a Promoção do Aleitamento Materno, com a missão de mais do que duplicar a taxa de aleitamento materno exclusivo nos primeiros meses de vida do bebé. Agora sabota essa missão, para acabar com a fraude.
Qual fraude? A ministra não explicou, nem o Ministério responde a questões dos jornalistas sobre o assunto, desde domingo. Não há dados, nem provas, nem o mais leve indício publicado que fundamente que o problema existe, muito menos qual a sua dimensão. Há o “temos conhecimento” da ministra. Um achismo autossuficiente que justifica alterar uma política pública sem sequer validar os seus fundamentos ou estudar os seus impactos.
O Governo anda a prometer, e bem, desburocratizar e simplificar o funcionamento do Estado para facilitar a vida a investidores e empresas. Mas, quando se trata de direitos sociais, cria obrigações acrescidas de provas, papéis e carimbos de seis em seis meses para infernizar a vida de todos, a cavalo de umas vagas fraudes cuja dimensão, ou sequer existência, nem se maça a demonstrar. O Estado ágil e descomplicado é para quem possa pagá-lo.
Na verdade, não surpreende ver a ministra da Solidariedade mais empenhada na solidariedade corporativa do que na solidariedade social. Maria do Rosário Ramalho é hoje o exemplo mais gritante de uma cultura de conflitos de interesses que há muito permeia a política e se instalou no Governo. A sua família direta ilustra de forma eloquente um mercado de influências que une poderes públicos e privados e se banqueteia nos favores da lei. Ramalho, convém lembrar, é o apelido do gestor António Ramalho, marido da ministra, com profícua carreira, quer no setor público, quer no privado. Passou pela Infraestruturas de Portugal antes de aterrar no Novo Banco, de que foi CEO no período em que o “banco bom” do BES, comprado pelo fundo abutre da Lone Star, se serviu de 3,4 mil milhões de euros do Fundo de Resolução.
Sugado o filão das garantias públicas, Ramalho deu por concluído o seu serviço aos cobóis do Texas, que agora empocharam 4,8 mil milhões com a venda do Novo Banco. Ainda passou por uma consultora que o próprio havia contratado, na mesma lógica de porta giratória em que construiu o seu currículo, antes de uma passagem fulgurante pela Cruz Vermelha Portuguesa. Em maio, voltámos a vê-lo num lugar-chave: a presidência da Lusoponte, precisamente no momento em que a concessionária das pontes 25 de Abril e Vasco da Gama começa a negociar com o Governo uma eventual extensão da concessão (ou um novo concurso) para construir a terceira (e quem sabe a quarta) travessias, já anunciadas pelo Governo. Ramalho parte para essa negociação com a experiência que traz do lado público, na Infraestruturas de Portugal, e com o conforto de ter a esposa sentada à mesa do Conselho de Ministros. Como se não bastasse, a sua filha, Inês Ramalho, é vice-presidente do PSD. Entre pai, mãe e filha, a tríade Ramalho está instalada, simultaneamente, no concessionário, no Governo e no partido.
Depois dos dois anos, estranhou a ministra, “acho difícil de conceber” que uma criança continue a precisar de leite materno durante o horário de trabalho. Já um banco ou uma concessionária precisam da amamentação do contribuinte durante muito mais tempo do que isso. As prioridades públicas no combate aos abusos ficam claras. Acautelem-se, mães e bebés: a mama não é para todos.
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