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João Carlos Barradas
23.08.2025

Se fosse possível afogá-los

“Majestade, se for possível afogar os 6 ou 7 milhões de judeus no Mar Negro não levanto qualquer objecção. Mas se isso não é possível, temos de deixá-los viver”.

O massacre, as violações, a destruição e as pilhagens do Domingo de Páscoa de 1903, em Kishiniov, capital da Bessarábia, foram mais vis e cruéis do que era então corrente no Império Russo. 

Mais do que a morte de 49 judeus o que chocou algumas consciências na Rússia, como o desalinhado e heterodoxo Lev Tólstoi, foi sobretudo a conivência oficial, a hostilidade dos clérigos que celebravam a Páscoa Ortodoxa, a indiferença de gente elegante que assistiu curiosa às atrocidades.  

Os incitamentos da imprensa antissemita à punição de uma corja sedenta do sangue de crianças cristãs para os tétricos rituais da judiaria tinham conduzido à matança. 

O que acontecera em Kishiniov (actual Chisinau, capital da Moldova) evocava a vaga horrorosa de perseguições aos judeus após o assassinato do Imperador Alexandre II, em 1881.

Fora a partir de então que se vulgarizara e internacionalizara o termo pogrom (do russo destruir, arrasar) para nomear as perseguições antijudaicas, mas foi o massacre de Kishiniov a marcar um momento de viragem.   

O trauma de mais um pogrom pôs em causa a existência de uma comunidade confrontada com o violento desprezo dos goyim (gentios).

A maioria fechava-se no culto da tradição, na devoção religiosa, com forte peso do misticismo veiculado pelo hassidismo do rabino Israël ben Eliezer desde o século XVIII, e uma minoria letrada e empresarial, buscava a integração no sistema imperial. 

Kishiniov desesperou liberais e conservadores judeus e radicalizou a militância sionista e socialista.  

Praticamente 90% dos 5,2 milhões de judeus – 4% dos súbditos do tzar Nicolau II – estavam confinados à Área de Residência permitida aos «assassinos de Cristo», uma zona que englobava parte do sudoeste da actual Rússia europeia, o sudeste da Letónia, e, essencialmente, regiões da Polónia, Lituânia, Belarus, Moldova e Ucrânia. 

Os judeus dos shtetls, as aldeias e vilórias dos confins do Império Austro-Húngaro e da Rússia, de língua ídiche, pouco diziam a Theodore Herzl, escritor e publicista de nomeada na Viena dos Habsburgos. 

O fundador do movimento que deu corpo ao sionismo político via, no entanto, nesses destituídos que emigravam em massa para a América um elemento essencial à constituição do Estado Judaico preconizada no panfleto de 1896 que o tornara famoso. 

Do Sinai a Moçambique        

No ano do massacre de Kishiniov, contudo, o coração claudicava e Herzel perdia-se num labirinto. 

Confrontava-se com correligionários que criticavam as suas infrutíferas tentativas para conseguir apoios de governos e soberanos – incluindo paradoxalmente o Sumo Pontífice – à criação de entidade autónoma judaica.  

Um estado na Palestina, domínio do sultão otomano Abdülhamid II, era o desiderato do movimento sionista que considerava irrelevante a eventual oposição de árabes muçulmanos e cristãos à emigração judaica, mas seria talvez necessário passar por uma etapa intermediária.  

O sionista Max Nordau – nascido em Budapeste tal como Herzel – falava num Nachtasyl, um albergue nocturno, e era isso o que Herzel tinha em vista ao discutir com Londres a proposta de emigração para a África Oriental, o chamado Uganda Scheme aventado por Joseph Chamberlain, ministro das colónias de sua Majestade Eduardo VII. 

Em Maio de 1903, Herzel abordaria, inclusivamente, com Miguel de Noronha, Conde de Paraty, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário do Reino de Portugal em Viena, a hipótese da instalação de uma colónia judaica em Moçambique.  

Uma autorização de emigração para um destino autónomo judaico – uma colónia sustentada por uma potência protectora – que entusiasmasse até os demais 3,5 milhões de judeus residentes na Europa ou o milhão e meio estabelecido nos Estados Unidos, era a um objectivo aceitável.  

Junto aos rios da Babilónia     

Só que esse destino não estava em África ou na Argentina. 

Renegar a Palestina, esquecer Jerusalém (Se eu te esquecer, ó Jerusalém, mirre a minha mão direita! Salmo 137), era inaceitável para muitos militantes sionistas. 

Essa discórdia marcaria o sionismo até a Grande Guerra selar a ruína dos impérios otomano, russo e austro-húngaro e consumia a saúde cada vez mais frágil de Herzel.   

Inopinadamente, abriu-se uma porta na capital tzarista onde a radicalização do sionismo, agravada pelo pogrom de Abril em Kishiniov, preocupava as altas esferas.  

Viatcheslav von Plévie, ministro do Interior e chefe do Corpo de Polícia, aceitou receber Herzel em St. Petersburgo. 

O primeiro encontro ocorreu a 8 de Agosto de 1903 e esboçou-se um acordo. 

Von Plévie manifestou a sua preocupação com a politização do movimento sionista crescentemente envolvido na contestação ao regime tzarista em vez se limitar a canalizar esforços para a emigração judaica. 

O ministro advertiu contra o nacionalismo judaico num Império em que só era possível integrar súbditos fiéis ao tzar, independentemente de diferenças de fé e de língua – caso dos finlandeses, por exemplo – através de um demorado processo de educação e progresso económico. 

A integração dos judeus que, reconhecidamente, viviam em condições difíceis na Área de Povoamento, era particularmente intrincada e complicava-se com a sua crescente adesão a organizações subversivas.  

O governo de Nicolau II estava essencialmente interessado em ver-se livre de uma minoria religiosa indesejável e, portanto, a emigração dos judeus colhia o seu favor, adiantou von Plévie. 

Herzel não levantou objecções e expôs o seu pedido de liberdade de acção das organizações sionistas russas para fomentarem a emigração através de fundos obtidos mediante um regime especial de taxação de judeus, além de apoio diplomático à criação de uma colónia em território do Império Otomano.   

Em novo encontro, a 13 de Agosto, von Plévie comunicou que Nicolau II aceitara suspender a prevista ilegalização das organizações sionistas na Rússia a troco de moderação nas críticas que associados de Herzel faziam no estrangeiro ao tzarismo. 

Nicolau II exigia, ainda, o abandono de pretensões nacionalistas de autonomia judaica, inadmissíveis num Império assente na autocracia. 

O líder sionista recolheu ainda a promessa de contactos diplomáticos de St. Petersburgo com a corte otomana no sentido de o sultão facilitar ou aceitar a emigração judaica para o Sinai ou a Palestina.  

No seu diário Herzel registou uma boa impressão de von Plévie, ao contrário da apreciação que fez do ministro das finanças, Sergei Witte, com quem se reuniu a 9 de Agosto, uma semana antes deste assumir a chefia do governo. 

Matar ou resignar-se 

Herzel conseguiu o que pretendia no encontro com o futuro primeiro-ministro de Nicolau II: autorização para abrir uma sucursal do Banco de Colonial Judaico na Rússia e a livre transacção das acções da instituição criada em 1899. 

Escapou, contudo, ao líder sionista o sentido mais lato das perorações de Witte que iniciara a sua carreira ministerial em 1892 às ordens do tzar Alexandre III. 

Witte foi explícito na sua acrimónia contra os judeus e adiantou que muito do ódio vivaz que existia na Rússia se devia a preconceitos religiosos, temor à concorrência económica, mas também desprezo pela pobreza abjecta da judiaria e asco aos seus negócios sujos de proxenetismo e usura. 

Não faltavam razões e, ainda por cima, os judeus representavam cerca de metade dos membros de partidos revolucionários, precisou Witte. 

O ministro admitiu, em seguida, que o governo tinha culpas na situação. Os judeus sofriam uma opressão excessiva. 

Então, o ministro declarou: «Costumava dizer ao falecido Imperador Alexandre III: “Majestade, se for possível afogar os 6 ou 7 milhões de judeus no Mar Negro não levanto qualquer objecção. Mas se isso não é possível, temos de deixá-los viver”. Continuo a ser dessa opinião. Oponho-me a mais opressão.» 

Herzel partiu e antes de deixar a Rússia teve um acolhimento triunfal ao parar, a 16 de Agosto, em Vilnius, a chamada «Jerusalém da Lituânia».  

Depois, a coisas precipitaram-se e a Rússia perdeu a guerra que iniciou com o Japão em Fevereiro de 1904. Abriu-se caminho a uma revolução. 

Von Plévie foi assinado num atentado perpetrado em St. Petersburgo pelo Partido Socialista Revolucionário – uma organização infiltrada ao mais alto nível pelos seus agentes policiais – a 28 de Julho de 1904. 

As reformas que Witte encetou após a Revolução de 1905 para salvar o regime da obtusidade de Nicolau II foram em vão e tudo ruiu em 1917.  

Herzel morreria, aos 44 anos, de doença cardíaca na aldeia de Edlach, na Áustria, a 3 de Julho de 1904 e um ano depois o VII Congresso Sionista em Basileia rejeitaria qualquer compromisso que pusesse em causa um Heimstatte, um Estado nacional na Palestina reconhecido por lei pública.

Em 1917 a aspiração sionista apoiar-se-ia na garantia de estabelecimento de um «lar nacional para o povo judeu» nos termos da declaração do chefe da diplomacia do Reino Unido, Arthur Balfour. 

Mais de um século passado judeus, russos, ucranianos e outros tantos ainda fazem por ignorar o sentido das conversas de Agosto de 1903 em St. Petersburgo. 

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