Secções
Entrar
João Carlos Barradas
20.12.2025

O mal da consoada

Ficaram por ali hora e meia a duas horas, comendo e bebendo, até os algemarem, encapuzarem e levarem de novo para as celas e a rotina dos interrogatórios e torturas.

Tiraram-lhes os capuzes, as algemas, e sentaram-nos a uma mesa numa sala onde nunca tinham estado. 

Eram uns 17 presos, acompanhados por uns quantos oficiais, e fez-se silêncio até entrar o capitão José Antonio Supisiche, director da «Escola de Mecânica da Armada». 

Nesse 24 de Dezembro de 1979, Suspisiche limitou-se a dizer-lhes: “Boa noite, meus senhores. Desejo-lhes um Feliz Natal”. 

Foi-se embora e os presos da «Escola de Mecânica da Armada» ficaram por ali hora e meia a duas horas, comendo e bebendo, até os algemarem, encapuzarem e levarem de novo para as celas e a rotina dos interrogatórios e torturas.  

O relato desta consoada em Buenos Aires consta do depoimento de Víctor Melchor Basterra, operário gráfico, militante das «Forças Armadas Peronistas», detido, com a mulher e filha de dois meses, em Agosto de 1979. 

O testemunho de Basterra, em Julho de 1985 no «Julgamento das Juntas» – o processo de dez dos chefes de três das quatro Juntas Militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983 –, assumiria singular relevância por o militante da extrema-esquerda peronista ter sido integrado no chamado «processo de recuperação de detidos» como fotógrafo e falsificador de documentos. 

Até ser libertado, em Dezembro de 1983, da «Escola de Mecânica da Armada», que funcionava como centro de detenção e tortura, Basterra conseguiu ocultar fotografias de presos e também de militares constantes dos arquivos do complexo militar na capital. 

Liccio Gelli é, também, outra das muitas caras que se desvelam nas provas em papel de revelação que Basterra escondeu.   

É a foto do passaporte argentino do italiano da loja maçónica «Propaganda due», homem de muitas devassidões, envolvido nas fraudes e falência do «Banco Ambrosiano» com suas ligações ao Vaticano e à Mafia. 

Desde 2004 as instalações do centro clandestino de detenção onde foram presas e torturadas cerca de cinco mil pessoas, sobrevivendo duas centenas, albergam o «Espaço para a Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos», e as fotos que Basterra, falecido em 2020 aos 76 anos, salvaguardou são testemunho único do destino de carrascos e vítimas. 

Guerra suja

Entre 20 mil a 30 mil mortos e desaparecidos é o balanço da «Guerra Suja» que a partir de Janeiro de 1974 opôs militares e bandos armados de extrema-direita contra grupos terroristas da extrema-esquerda peronista («Montoneros», «Forças Armadas Peronistas»), comunistas guevaristas do «Exército Revolucionário do Povo» e anarquistas da?«Resistência Anticapitalista Libertária».  

A «Guerra Suja» marcou a Argentina com um ferrete de ignomínia moral. 

Jorge Luis Borges, o mago da literatura metafísica, foi um dos argentinos presentes à sessão em que Basterra narrou a sua sorte: espancamentos, choques eléctricos, a tortura da mulher, a sujeição a um trabalho sujo.  

Aos 86 anos, a Borges a vida já lhe escapava das mãos – morreria em Genebra em Julho de 1986 – e fora-se a rebeldia que impusera a si próprio como herdeiro dos valores de família patrícia fiel ao liberalismo do «Partido Radical». 

Resignado a um conservadorismo céptico, sentia a oposição de sempre que jurara ao fascismo e ao peronismo, abjurava do passo em falso que dera ao apoiar militares argentinos e chilenos para reporem a ordem e conterem fúrias irracionais da turba numa «ditadura iluminada». 

Tudo fora engano, falso, sinistro, e tudo o indignava: a tortura, o abuso, a mentira, a desvergonha de militares que negaram o direito à justiça e se refugiavam agora atrás de advogados, a desonestidade com que chantagearam presos, os assassínios e raptos. 

Nesse dia de Inverno austral, Borges disse às dezenas de jornalistas que o rodeavam no «Palácio da Justiça da Nação» ser imperativa uma «sentença exemplar». 

Os assassinos não podiam sair impunes; tinham criado um inferno. 

Inocente radical

Chocado ainda com o relato da consoada do capitão José Antonio Supisiche, Borges viu nessa ceia algo que «não era escárnio, não era uma manifestação de cinismo, não era remorso». 

Para Borges aquela consoada representava «uma espécie de inocência do mal». 

A caracterização de Borges pode parecer estranha, mas não se afasta muito da formulação que a judia alemã Hannah Arendt avançara no final do seu estudo sobre «As Origens do Totalitarismo», publicado em 1951. 

Há, irremediavelmente, um mal infinito que leva ao extermínio, sem qualquer consideração por outrem, numa inconsciência incondicional.  

Para a filósofa, fugida ao nazismo, esse «mal radical surge ligado a um sistema em que todos os homens se tornaram igualmente supérfluos».  

Sabia ela e sabia ele que há consoadas em que o peso do mal soa leve como o crepúsculo.  

Mais crónicas do autor
20 de dezembro de 2025 às 08:00

O mal da consoada

Ficaram por ali hora e meia a duas horas, comendo e bebendo, até os algemarem, encapuzarem e levarem de novo para as celas e a rotina dos interrogatórios e torturas.

13 de dezembro de 2025 às 08:00

No topo do mundo

São cada vez mais escassas as expectativas de progressão profissional com aumento de rendimentos e melhores condições de trabalho nas presentes condições do mercado laboral.

06 de dezembro de 2025 às 08:00

A União Europeia sem dinheiro para a Ucrânia

Passar do congelamento ao confisco de activos de um estado soberano pode ter consequências devastadoras e gravosas para a economia da zona euro.

29 de novembro de 2025 às 08:00

Um psicopata afável

A ambição de identificar uma possível essência individual do mal fascinou naturalmente os psiquiatras que analisaram os detidos nazis de Nuremberga.

22 de novembro de 2025 às 08:00

A América foi-se e ficámos sozinhos

Vladimir Putin alcançou o objectivo estratégico de dissociar a defesa europeia da intervenção militar norte-americana ambicionado pelos comunistas soviéticos.

Mostrar mais crónicas
Descubra as
Edições do Dia
Publicamos para si, em três periodos distintos do dia, o melhor da atualidade nacional e internacional. Os artigos das Edições do Dia estão ordenados cronologicamente aqui , para que não perca nada do melhor que a SÁBADO prepara para si. Pode também navegar nas edições anteriores, do dia ou da semana.
Boas leituras!