Sábado – Pense por si

Eurico Reis
Eurico Reis Juiz Desembargador Jubilado
28 de setembro de 2025 às 13:37

O "Reichtag moment" nos EUA

Em 1933, antes mesmo de ter sido realizada uma qualquer investigação, os nazis culparam os comunistas por esse incêndio.

Como se veio a apurar mais tarde, na noite do dia 7 de fevereiro de 1933 um trabalhador da construção civil holandês, que se encontrava desempregado, de nome Marinus van der Lubbe pegou fogo ao edifício do Reichstag (Parlamento Alemão), causando danos muito graves nessa edificação.

Contudo, antes mesmo de ter sido realizada uma qualquer investigação, os nazis, cujo chefe (Führer), Adolf Hitler, havia sido nomeado chefe do governo (Chanceler, ou mais exactamente Reichskanzler) em 30 de janeiro de 1933, culparam os comunistas por esse incêndio, expulsaram os deputados desse partido que tinham assento no Parlamento e prenderam um número considerável dos líderes dessa organização política até aí legal, impedindo que a mesma participasse nas eleições que estavam previstas para março desse mesmo ano.

Tudo isto sob o pretexto de que os comunistas constituíam um perigo para o país e que iriam usar a campanha eleitoral para desencadear outros actos violentos.

Ao mesmo tempo, os nazis usaram esse mesmo incêndio para persuadir o presidente da República (Paul von Hindenburg  - de seu nome completo Paul Ludwig Hans Anton von Beneckendorff und von Hindenburg) a emitir legislação restritiva das liberdades públicas e individuais, nomeadamente a liberdade de expressão e o direito à liberdade de imprensa, em concreto, o Decreto de Fogo do Reichstag, assinado ainda em fevereiro de 1933, ao qual se seguiu, no subsequente mês de março, a assinatura da Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933, pela qual o Parlamento dava ao governo de Hitler poderes legislativos, iniciando desse modo a instalação da ditadura sanguinária cujas consequências nunca poderão jamais ser esquecidas.

Só por curiosidade, é conveniente assinalar que Hindenburg morreu no ano seguinte (2 de agosto de 1934), facto de que Hitler se aproveitou para declarar que o lugar de Presidente ficava vazio e, como "Führer und Reichskanzler", passaria, como passou, ele próprio, o Chefe de Estado do Reich.

De igual modo, é indispensável recordar que, após julgamento, ainda presidido por juízes nomeados no período da República de Weimar antes da nomeação do governo de Hitler, os comunistas acusados de ter incendiado o edifício do Reichstag foram absolvidos – mais exactamente, foi demonstrada a falsidade dessa acusação -, o que desencadeou um ataque feroz dos nazis ao sistema judicial herdado dessa República e a criação de um sinistro tribunal especial denominado Volksgerichtshof (VGH - expressão que em alemão significa "tribunal do povo"), que esteve ativo na Alemanha entre 1934 e 1945, tendo sido responsável pelo julgamento de acusados de crimes de alta traição e atentado contra a segurança do Estado.

Para uma melhor compreensão da natureza desse dito tribunal, presidido por um homem chamado Roland Freisler (como juiz, ainda que jubilado, recuso-me a atribuir-lhe uma tal designação institucional), relembro que, durante os anos que teve de existência, pelo mesmo foram proferidas mais de 5000 sentenças de morte.

Repito, cinco mil sentenças de morte. Que foram mesmo executadas.

Este nível de horror não foi, até ao momento, atingido nos EUA de Donald Trump.

Todavia, o uso da expressão “Reichstag Moment” para qualificar os actos e as campanhas de destruição da Democracia e de subversão do Estado de Direito que estão a ser, respectivamente, praticados e desenvolvidas pelo governo (a Administração) de Donald Trump e pelos seus apaniguados do Partido republicano MAGA na sequência do assassinato do activista de extrema-direita Charles James Kirk, mostra-se mais do justificado.

Na verdade, imediatamente a seguir à morte desse pseudo-moralista e falso defensor dos valores do cristianismo, que mais não era do que um totalitário adorador de armas e propagandista do ódio, da intolerância, da xenofobia e da homofobia (e que, tal como Elon Musk, odiava a empatia, que igualmente considerava uma fraqueza), a histeria incendiária dos MAGA, apoiada, incentivada e ampliada pelo próprio presidente da República, começou, desde logo e sem qualquer evidência probatória, a acusar a esquerda de ser responsável por esse homicídio.

E o próprio Trump não se coibiu de, sem que qualquer julgamento tivesse sido realizado ou uma qualquer acusação tivesse sido sequer formulada, exigir a aplicação da pena de morte para o alegado suspeito da prática do crime.

Nem mais nem menos aquilo que os nazis fizeram em 1933 e 1934.

Para além disso, esses mesmos republicanos MAGA começaram a exigir a demissão de todos aqueles que se recusavam a endeusar o assassinado, que, tal como fazem os terroristas muçulmanos relativamente aos que morrem nos atentados de que são autores, foi elevado ao patamar de mártir.

O que, para os verdadeiros cristãos, constitui, em termos religiosos, um pecado de idolatria.

Afinal, quem é que tem comportamentos iguais aos dos membros do HAMAS, do DAESH, dos Talibãs e de outras organizações terroristas do mesmo jaez?

E esse movimento de silenciamento/cancelamento das vozes dissonantes – uma claríssima e inequívoca violação da Primeira Emenda da Constituição dos EUA no que respeita às garantias reconhecidas, entre outros, ao direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa -, sendo mais visível relativamente a proeminentes humoristas com programas telivisivos, já afectou um incontável número de pessoas não tão conhecidas que exerciam a sua actividade em áreas tão diversificadas como as universidades, a função pública e os meios culturais.

E quanto a essas pessoas não existiu o recuo de que beneficiou, por exemplo, o humorista James Christian (Jimmy) Kimmel.

Tudo isto quando, afinal, o alegado atirador, entretanto detido, é um igualmente adorador de armas, oriundo de uma família ultra-conservadora de republicanos registados, cujos membros pertencerão à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mais conhecidos como Mórmons), com um pai que foi agente policial.

Enfim, alguém que será ideologicamente muito mais próximo do falecido Charles James Kirk do que de alguma organização de esquerda ou do Partido Democrático estado-unidense.

Está, pois, claramente demonstrado que, para os MAGA e para o resto da extrema-direita fascista ou fascizante dos EUA, o free speech ou a freedom of speech é algo de que só eles podem beneficiar - só eles e mais ninguém.

E, como já referi anteriormente (ver texto n.º 17 desta série “Os despojos de Abril”) é completamente ignominioso e ética e moralmente inaceitável atribuir a título póstumo a Charles James Kirk uma “Medalha Presidencial da Liberdade” quando nada disso foi feito - bem pelo contrário, os autores desse crime foram indultados e perdoados assim que Trump tomou posse para exercer o seu segundo mandato como presidente dos EUA - relativamente às pessoas que foram assassinadas no ataque ao Capitólio dos Estados Unidos ocorrido em 6 de janeiro de 2021, perpetrado por partidários do então presidente Donald Trump por ele convocados para se reunirem em Washington, D.C. para protestar contra o resultado da eleição presidencial de 2020, justamente na data em que o Senado e a Câmara de Representantes se reuniam para certificar a vitória de Joe Biden.

Em suma, para Trump e os seus apoiantes, agora cada vez mais sustentados e enquadrados pelas reaccionárias organizações evangélicas, que pregam e praticam um dito cristianismo que se baseiam em arrevesadas, preconceituosas, maniqueístas e primárias interpretações literais dos textos (de alguns textos) do Antigo Testamento - na versão da Bíblia do Rei James (King James Bible) -, heróis são aqueles que violam, de modo sistemático e persistente, os direitos humanos universais, a Democracia e o Estado de Direito, e não aqueles e aquelas que defendem esses valores democráticos que, eles sim, constituem o corpo central estruturante da Civilização Ocidental e da Cultura que lhe está subjacente.

Pelo caminho, nos EUA já começaram a ser cerceados outros direitos sociais e até o próprio direito de voto, impondo limitações inaceitáveis ao seu exercício, bem como foi dado início, sem qualquer pudor ou disfarce, a um processo de alteração dos contornos dos círculos eleitorais por forma a assegurar a perpetuação da maioria de assentos no Congresso (Senado e Câmara de Representantes) de que os republicanos MAGA actualmente dispõem.

E, de igual modo, são constantes os ataques despudorados e infundamentados aos juízes que se atrevem a não dar razão às pretensões de Trump e dos seus apoiantes. Alguns desses ataques/insultos gratuitos são até ordinários, vis e grosseiros.

Fazendo uso da imagem consagrada num merecidamente famoso filme do sueco Ernst Ingmar Bergman, nos EUA, a serpente já saiu do ovo.

Isto é, o fascismo já está activo e a ganhar força nesse país que, se calhar e ao contrário do que por muitos foi apregoado, nunca foi o tão proclamado e incensado farol da Liberdade.

E, para nosso mal, em Portugal passa-se o mesmo.

Eurico Reis

Juiz Desembargador Jubilado

Presidente da Direcção da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM)

Vice-presidente da Direcção da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos - Civitas (LPDH-C)

Ex-presidente do Conselho Nacional de

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