O genocídio dos palestinianos da Faixa de Gaza também tem que ver com a nossa liberdade e a nossa segurança
O que vier a acontecer na Faixa de Gaza moldará o futuro da Democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos no Mundo.
No álbum de Sérgio Godinho “Pré-Histórias”, que saiu a público em 1972, pode ser encontrada uma canção que tem por título “Pode alguém ser quem não é?” e na qual, num dos seus versos, esse cantautor pergunta/afirma isto:
“Pode alguém ser livre se outro alguém não é?
A corda d'um outro serve-me no pé
Nos dois punhos, nas mãos, no pescoço, diz-me
Pode alguém ser quem não é?”
E é isso mesmo.
Tanto ou mais como a solução que vier a ser encontrada para a guerra na Ucrânia, o que vier a acontecer na Faixa de Gaza moldará o futuro da Democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos no Mundo. Ou seja, moldará o futuro da Civilização Ocidental e o nosso futuro.
E quando refiro o nosso futuro, quero referir-me, muito em particular, aos portugueses e aos outros europeus.
Neste momento, apesar dos esforços dos negacionistas e das suas profissionalmente orquestradas campanhas publicitárias, a evidência de que o que está a acontecer aos palestinianos na Faixa de Gaza constitui um genocídio, está a tornar-se patente a nível planetário.
Todavia, apesar da crueldade insustentável da situação, não é ainda possível vislumbrar quando e como irá terminar a carnificina. O que mostra bem até que ponto chegou a insensibilidade dos dirigentes da maior parte dos Estados perante as sistemáticas violações de direitos humanos que estão a ser praticadas nessa como em outras as partes do Mundo.
O que é terrível, ou melhor, terrivelmente preocupante.
De facto, quem tolera essas atrocidades, que são também violações do direito internacional (e isso, quer se queira quer não, é uma forma de cumplicidade), irá, mais cedo que tarde, começar a pensar que outros direitos poderão igualmente ser postos em causa com igual impunidade.
Como abundantemente venho escrevendo e dizendo, a Democracia e o Estado de Direito (e os valores éticos que lhes tão subjacentes e lhes dão estrutura e consistência) não são algo de natural nos seres humanos, antes constituindo aquisições culturais e civilizacionais cuja construção demorou séculos a edificar e implicou muito sofrimento e muitos sacrifícios, incluindo perdas de vidas, a incontáveis gerações.
O que é mais consentâneo com os nossos instintos primários - de todos (e todas) nós - é a tentativa de dominação dos outros e da imposição da nossa vontade (ou a do grupo a que pertencemos) aos demais. Daí que seja tão reduzido o número de Estados em que essa forma de organização social está implantada.
Acontece, porém, que, por não ser algo natural, essa construção é frágil e a sua manutenção exige uma luta quotidiana, persistente e sistemática, contra aqueles cujos interesses são muito mais bem servidos com soluções de governo ditatoriais e autoritárias.
Isto apesar de, o que é tristemente irónico, a História da Humanidade demonstrar, de modo inequívoco, que as pessoas vivem melhor (e até vivem por muitos mais anos) nos países que estão organizados de acordo com esse modelo social - isto é, em Democracia e com um Estado de Direito.
E é por isso que não tenho qualquer dúvida que Trump e os seus correligionários têm inveja de Putin e Xi Jinping (embora na China o poder não esteja tão concentrado como na Federação Russa) por estes não terem de lidar com os “empecilhos” e as “forças de bloqueio” que existem nos países democráticos.
E o mesmo se passa com os sociologicamente poderosos que vivem no resto do Mundo, incluindo, naturalmente, em Portugal.
Como bem afirmou no século XIX o político e historiador britânico John Emerich Edward Dalberg-Acton, 1.º barão Acton (Lord Acton), o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Voltando a Sérgio Godinho, quando não lutamos pela libertação daqueles que são perseguidos noutras partes do Mundo, mais cedo do que tarde, a corda que prende esses outros estará enrolada nos nossos punhos e no nosso pescoço.
O que se passa em Gaza é mais terrível do que acontece em outros lugares do Mundo porque o grau de atrocidade dos violadores de direitos humanos atingiu níveis até há pouco tempo inimagináveis (trata-se, efectivamente, de uma repetição do que foi feito no passado pelos nazis ao povo judeu - o que constitui uma tragédia, uma verdadeiramente muito trágica ironia), e porque tudo está a ser feito em obediência a um plano pérfido cuja existência os criminosos têm a desfaçatez e o despudor de expor publicamente e sem qualquer disfarce.
Refiro-me, obviamente, ao projecto de transformar a Faixa de Gaza, livre e desocupada dos palestinianos cuja presença no local é um estorvo, numa enorme estância turística - numa enorme Riviera.
E o facto de tudo isto não ser visceralmente intolerável para os governantes de tantos Estados Ocidentais, diz muito acerca desses dirigentes.
Mas, para mim, Gaza é relevante por uma outra razão.
Em 25 de janeiro de 2006, no âmbito do projecto de reconhecimento internacional do Estado Palestiniano, foram realizadas eleições em Gaza, na Cijordânia e em Jerusalém Oriental, com vista a eleger os 132 membros do Conselho Legislativo da Palestina (CLP), órgão legislativo da Autoridade Nacional Palestina (ANP), criada peloos Acordos de Oslo.
Nessas eleições, que foram consideradas pelos observadores internacionais "competitivas e genuinamente democráticas" - e foram mesmo - o Hamas alcançou a vitória, conquistando 74 assentos no CLP, tendo o Fatah eleito apenas 45 deputados.
Essa vitória deveu-se sobremaneira à campanha anti-corrupção desenvolvida pelo Hamas contra o Fatah (organização esta cujos membros tinham realmente essa fama de corruptos e, porventura, o proveito).
Depois nunca mais houve eleições.
Ou seja, cuidado com aqueles que estão sempre a falar em corrupção – e que, em boa verdade, só falam e nada, ou muito pouco, fazem.
E o que se está a passar actualmente nos EUA também é um bom exemplo de como é vital ter muito cuidado com certas campanhas políticas.
Mas esse assunto merece uma outra crónica. Contem com ela.
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Mas será que não há limites para a baixeza de carácter?
A sordidez da vida política tem-se acentuado de uma forma tão ignominiosa que não consigo deixar de tomar posição acerca dessa baixeza que se está a tornar “o novo normal” dos terríveis tempos que estamos a viver.
Quando a incompetência ganha, há perdas. Incluindo a perda de vidas humanas
Só espero que, tal como aconteceu em 2019, os portugueses e as portuguesas punam severamente aqueles e aquelas que, cinicamente e com um total desrespeito pela dor e o sofrimento dos sobreviventes e dos familiares dos falecidos, assumem essas atitudes indignas e repulsivas.
Os despojos de Abril. E o 12 de outubro aqui tão perto
No meio da negritude da actualidade política, económica e social em Portugal e no resto do Mundo, faz bem vislumbrar, mesmo que por curtos instantes, uma luz.
O que será que vai ser necessário para furar a bolha de irracionalidade em que estamos imersos?
É de uma ironia cruel que as pessoas acabem por votar naqueles que estão apostados em destruir o Estado Social. Por isso mesmo, são responsáveis pela perda de rendimentos e de qualidade de vida da grande maioria dos portugueses e das portuguesas.
Edições do Dia
Boas leituras!