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Eurico Reis Juiz Desembargador Jubilado
05.10.2025

Gaza, Gaza e, mais uma vez, Gaza

Campanhas dirigidas contra Mariana Mortágua mais não são do que inequívocos actos de misoginia e homofobia, e quem as difunde colabora com o que de mais cobarde, vil e ignóbil existe na sociedade portuguesa.

“Com o mal dos outros posso eu bem”.

Esta é uma das frases mais egoístas e menos empáticas que conheço.

Infelizmente, porque, como nunca me cansarei de repetir, até porque me dizem que esta afirmação irrita profundamente muita gente daquela que eu gosto de irritar, todos os seres humanos, sem excepção, nascem selvagens, egoístas e tendencialmente irracionais, o conceito contido nessa frase é por muita gente considerado como normal e perfeitamente aceitável.

Mas, considerando os verdadeiros valores éticos e princípios morais que caracterizam a Civilização Ocidental e a Cultura que lhe subjaz, esse egoísmo não solidário e não empático, muito menos fraterno é realmente totalmente inaceitável.

Onde param, para essa gente que se afirma tão cristã, os ensinamentos do judeu sefardita Yeshua ben David?

Em lado nenhum, porque essa gente é hipócrita e completamente farisaica, proclamando aos sete ventos valores que não praticam – porque, de facto, não os têm.

Yeshua ben David chamava a essa gente “sepulcros caiados”, aparentemente limpos por fora, mas por dentro repletos de uma repelente e repulsiva podridão.

E é por estar a assistir, enojado, às campanhas miseráveis que foram dirigidas contra a Flotilha Humanitária Global Sumud, branqueando completamente o crime de genocídio que está a ser cometido pelas forças armadas israelitas a mando do governo liderado pelo criminoso de guerra Benjamin Netanyahu, que conseguem ser bem piores do que o sentimento egoísta e não empático corporizado na frase inicial deste texto já que, ao invés da indiferença perante a dor alheia que a mesma representa, as pessoas que criam essas campanhas de ódio negam a existência do sofrimento e das mortes causadas por esse monstruoso crime e até, contra todas as provas que foram já apresentadas e devidamente sopesadas por várias instâncias internacionais, nomeadamente o TPI - Tribunal Penal Internacional e a ONU, negam a existência desse crime de genocídio, que tenho de continuar a escrever sobre Gaza.

Porque, insisto e voltando a socorrer-me de Sérgio Godinho, eu não inteiramente livre se me conformar com a falta de liberdade de outrem e se nada fizer para que esse outrem consiga ser tão livre quanto eu.

Até porque, afinal, aqueles negacionistas são tão negacionistas como aqueles que negaram e continuam a negar a existência do Holocausto.

Que ironia tão trágica e hedionda: com Benjamin Netanyahu e os seus defensores, dentro e fora do território do Estado de Israel, incluindo alguns portugueses e algumas portuguesas, os negacionistas do Holocausto estão agora irmanados com os negacionistas do genocídio que está a ser cometido em Gaza pelas forças armadas israelitas a mando do governo liderado pelo criminoso de guerra Benjamin Netanyahu.

E é por isso que vou deixar de fora assuntos tão importantes como a Comemoração da Implantação da República que se festeja neste 5 de Outubro (este é o 115º aniversário), a campanha eleitoral para as autárquicas (e os perigos para a Democracia, o Estado de Direito e a preservação dos direitos humanos universais, que poderão resultar de um resultado semelhante àquele que levou à actual composição da Assembleia da República), a progressiva e espero que não irreversível fascização do regime político dos EUA, e o lento e perigosíssimo caminho deslizante para uma guerra global que está a ser percorrido pelos dirigentes da Federação Russa, da União Europeia e dos EUA, com uma colaboração menor de outros governos, como por exemplo o da Ucrânia (que, contudo, é um país que foi invadido por outro, facto que não pode, de todo, ser ignorado).

E este último assunto (a guerra, em que, mais uma vez, os povos irão servir de carne para canhão ao serviço de interesses totalitários inconfessáveis) é mesmo particularmente grave porque alguns “inteligentes” acham mesmo que só os misseis nucleares tácticos irão ser usados – e não os outros com a capacidade de provocar a tal destruição mútua assegurada (em inglês, mutual assured destruction ou MAD - louco) de que antes ninguém duvidava.

Como se o grau de destruição assegurado por esses tais misseis nucleares ditos tácticos não fosse já monstruoso.

E a cegueira suicidárias dos dirigentes da NATO/OTAN e dos países europeus que são membros dessa organização é tanta que nem percebem que uma qualquer Administração dos EUA dirigida por Donald Trump ou por algum dos seus apaniguados do Partido Republicano MAGA, não se irá sacrificar para defender os europeus (que essa gente MAGA abomina e acusa de ter empatia a mais, considerando essa qualidade humana humanista uma fraqueza fundamental da civilização europeia que tem de ser superada).

Mas voltemos a Gaza, num momento em que, apesar de o Hamas ter aceitado as condições impostas pelo dito “plano de paz” pomposamente apresentado por Trump e Netanyahu, as forças israelitas continuaram a atacar o já tão massacrado povo palestiniano.

Ou melhor, voltemos às miseráveis e insultuosas campanhas que circulam em Portugal pelas redes sociais e que, continuando ignóbeis comportamentos já materializados quando a Flotilha Humanitária Global Sumud ainda não tinha sido vítima do acto de pirataria praticado pelos militares israelitas, têm como alvo principal a dirigente do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua.

E trata-se mesmo de um acto de pirataria, logo de um crime (mais um a somar a todos os outros), porque os actos foram praticados numa área do Mar Mediterrâneo que, podendo eventualmente já não ser águas internacionais, não fazem, de todo, parte da zona marítima exclusiva do Estado de Israel, e o bloqueio imposto por esse Estado à Faixa de Gaza é totalmente ilegal à luz do Direito Internacional em vigor (e já o era antes de ter ocorrido o reconhecimento internacional do Estado da Palestina), o que torna absolutamente ilegítimo e igualmente ilegal qualquer acto praticado que se procure sustentar ou justificar ao abrigo desse bloqueio ilegal.

Acontece que essas campanhas dirigidas contra Mariana Mortágua mais não são do que inequívocos actos de misoginia e homofobia, e quem as difunde colabora com o que de mais cobarde, vil e ignóbil existe na sociedade portuguesa.

Isto não é combate político nem exercício de liberdade de expressão ou de opinião, é pura e simplesmente lixo, que deveria repugnar e causar repulsa a qualquer pessoa minimamente civilizada.

Há muitos políticos portugueses que considero perigosos para a preservação da Democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos universais – e a alguns até qualifico como racistas, xenófobos, misóginos, homofóbicos, fascistas e propagandistas do ódio e da intolerância -, mas combato politicamente as suas ideias e não os reduzo a caricaturas, nem os desrespeito enquanto seres humanos.

O que estas campanhas demonstram é que os valores éticos e os princípios morais que são o suporte da Democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos universais, afinal, nunca se enraizaram realmente nas mentes e nas consciências dos portugueses e das portuguesas, que, quando muito, terão apenas uma concepção utilitária desses valores e princípios.

O que é muito pouco. Manifestamente muito pouco.

E volto ao princípio, no fundo o que estas campanhas, que têm como objectivo deixar que seja discutido o genocídio que continua a ser cometido na Faixa de Gaza e impedir a concretização do sistema de dois Estados aprovado em diversas deliberações da ONU e consagrado também nos Acordos de Oslo de 1993, demonstram é que é já demasiado grande a dimensão que assumem quer o espírito selvagem, egoísta e não empático manifestado através da frase “com o mal dos outros posso eu bem”, quer o grau de insensibilidade e de desumanidade que a ela estão indissoluvelmente ligados.

Ora, o que isso significa é que estão a ser criadas e/ou a consolidar-se as condições políticas para desencadear um retrocesso vitorioso no campo dos direitos sociais dos cidadãos e das cidadãs de Portugal, nomeadamente os direitos laborais, o direito à saúde e os direitos reprodutivos.

Começaram com os imigrantes, continuarão com os ciganos e a seguir irão atacar as mulheres e os e as homossexuais, não duvidem.

E para os que duvidam, digo-lhes: olhem para o que está a acontecer nos EUA, e muito em concreto para o que está a resultar do “shutdown” do governo federal - que, a meu ver, está a ser cada vez mais claro que se tratou de um acto propositado orquestrado por Trump e dos republicanos MAGA no Congresso.

Com a não aprovação do orçamento do governo federal, e o próprio Trump o confessou, o que se pretende é determinar o encerramento definitivo dos departamentos e dos programas “que não queremos, coisas democratas”, o que provocará o despedimento de talvez 40 mil funcionários federais.

Onde Elon Musk falhou, Trump não falhará dizem eles.

E que se lixe que isso possa provocar a perda de 15 biliões (milhares de milhões) de dólares dos EUA por semana ao PIB do país e possa ter um efeito de dominó na economia mundial - enfim, dos Estados que têm fortes laços económicos com esse país, porque os que gravitam em torno dos BRICS+, e muito particularmente da China, não serão tão afectados, o que constitui um claro sinal de que, parafraseando Bob Dylan, os tempos estão a mudar.

E estão a mudar para pior.

E esses são os efeitos práticos da insensibilidade, da desumanidade, do egoísmo e da falta de empatia para com os que sofrem.

Quando será que os portugueses e as portuguesas vão começar a perceber que o bem-estar e o conforto a que almejam (e a possibilidade de percorrer um caminho em busca da sua própria felicidade individual) só poderá ser alcançado com o fortalecimento da cooperação entre os membros da Comunidade, com o enraizamento e a consolidação da Democracia participativa, do Estado de Direito e da vivificação prática e generalizada dos direitos humanos universais?

Para bem de todos nós e dos nossos vindouros, espero que não demorem muito a fazê-lo.

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