Secções
Entrar

Nasci para sofrer na Guiné-Bissau. Os espancamentos começaram em 1992 e não pararam mais

António Aly Silva 11 de março de 2021 às 12:18

O jornalista guineense António Aly Silva relata como foi raptado, ameaçado com uma AK-47 e espancado, acusando o presidente Umaro Embaló de ter estado por detrás do caso.

Era ano sim, ano sim. Fuga para o Senegal, para o além e depois para parte nenhuma - o exílio, diz-se, não é pátria que convém a ninguém. Desta vez escolhi ficar.

No dia 9, Bissau e todos nós acordamos para mais um dia sem segredos. As voltas na cidade, compras aqui e ali. E já era hora do gin na ‘Garagem’, propriedade do meu homónimo.

Trazem-me o almoço encomendado nas primeiras horas e traço a rota. Deixar o comer em casa e ir ao banco pagar a promissória. Qual quê. Alguém escolheu trocar-me as voltas e estragar o meu dia.

Se no dia 16 de março de 2020 consegui qual fittipaldi escapar aos meus algozes, numa perseguição a alta velocidade pelas estradas da cidade, desta vez chegaram em grande - um automóvel ultrapassou e meteu-se à frente. De dentro saiu alguém com ar de quem estava drogado, apontando e fazendo dançar a AK-47 com os uivos de "sai já do carro, sai já senão matamos-te. Sai, já, já".

A moeda caiu finalmente na ranhura. Era mais um daqueles dias. Friamente, saí do carro com as mãos ao alto. Não, não era um assalto. Tratava-se de um rapto à luz do dia, presenciado por mais de uma dezena de pessoas, algumas anónimas e outras em fuga.

Enfiaram-me no banco de trás de uma carrinha de caixa aberta, em meio a berros descontroláveis. "Vamos, arranca, arranca!". O automóvel virou à esquerda e a carrinha seguiu em frente.

"Vais morrer hoje", diziam. E quando levantei a cabeça,levei o primeiro murro. "Estás a ver se nos reconheces, é isso?" - Não, respondi, embora fosse verdade. Arrancaram-me a camisa, os botões saltaram cada um para o seu lado. O meu destino pertencia agora a terceiros, talvez drogados, talvez malucos mas de certeza absolutamente descontrolados.

Quando chegamos à zona industrial de Bolola, deram conta do erro - matar alguém ali, àquela hora, não era para qualquer um e a ordem foi avançar "para o Alto Bandim".

Mesmo vendado, consegui reconhecer alguns edifícios, e o do PNUD era o mais evidente. Grande e desengonçado, o edifício que, juram os profetas da desgraça, afunda uns tantos milímetros por ano, continua em pé rijo como um fuso. E a estrada para o Alto Bandim não engana ninguém - 3 quilómetros de pó fino e agua dos dois lados.

Quase a chegar ao Alto Bandim, encostaram-me uma AK-47 à cabeça com uma ordem: "desbloqueia o telemóvel". - Não, disse eu. O desafio foi demasiado para eles. Ao sentir o aço frio da besta na tola, não tive outra opção e o indicador direito desbloqueou o aparelho. Uns minutos depois, mais um pedido: "e a senha em números, qual é, diz, qual é? - Não tem. "Tem sim", gritou o magrinho, afagando a arma. E lá dei...

Chegados ao Alto Bandim "onde seria morto", tiraram-me do carro, o motorista sai para me dar um golpe conhecido como mata leão para me fazer ‘dormir’. Consegui, com uma dentada, libertar-me. O magrinho continuava a saltar de um lado para o outro com a Kalashnikov, sem saber o que fazer.

Foi então que os meus raptores viram um pedreiro numa casa em obras, tremendo quem nem uma vara verde por ver tantas armas. "Se alguém souber o que aconteceu aqui, vamos atrás de ti". O pobre coitado atirou a colher de pedreiro ao chão e desapareceu. Ponho-me a pensar se já terá voltado ao trabalho...

Quanto ao magrinho da AK, pensei "será que não me vê por eu ser ainda mais magro?" Nisto vem o motorista e, comigo já deitado no chão, vejo o seu punho acertar o meu rosto umas duas ou três vezes. Depois apaguei.

Não sei quanto tempo estive desmaiado, mas ao recuperar os sentidos e vendo-me na presença de quatro rapazes perguntei "mas afinal não me iam matar". Descansaram-me - a tropa deu-te um enxerte de porrada e abandonaram-te ali, junto ao rio. Se a maré enchesse ias com ela e depois diriam que morreste afogado.

Agradeci (agradeci mesmo?) e dois deles acompanharam-me até à estrada onde um desconhecido parou e perguntou o que se passara. Contaram-lhe e ele perguntou se eu queria ir com ele. Entrei e pedi que me deixasse no PNUD, o que fez.

Acusei Umaro Sissoco Embalo pelo meu rapto e espancamento e estou seguro do que disse.

Descubra as
Edições do Dia
Publicamos para si, em três periodos distintos do dia, o melhor da atualidade nacional e internacional. Os artigos das Edições do Dia estão ordenados cronologicamente aqui , para que não perca nada do melhor que a SÁBADO prepara para si. Pode também navegar nas edições anteriores, do dia ou da semana.
Boas leituras!
Artigos recomendados
As mais lidas
Exclusivo

Operação Influencer. Os segredos escondidos na pen 19

TextoCarlos Rodrigues Lima
FotosCarlos Rodrigues Lima
Portugal

Assim se fez (e desfez) o tribunal mais poderoso do País

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela
Portugal

O estranho caso da escuta, do bruxo Demba e do juiz vingativo

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela