Um manifesto pacifista, uma exposição da brutalidade do poder bélico, uma denúncia da podridão da ideologia nazi – tudo isto se poderia depreender da temática de Morrer na Primavera, o romance de 2015 de Ralf Rothmann editado em 2019 em português pela Sextante. A narrativa acompanha, afinal, o percurso de Walter, um jovem alemão de 18 anos recrutado contra a sua vontade para combater pelo Terceiro Reich nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, numa altura em que já não havia esperanças para as forças do Eixo.
Mas todas estas características – que, de facto, se fazem sentir de forma pungente à medida que "dois amigos são arrastados para a maquinaria de guerra, e por ela transformados" – são subalternas a um motivo superior, a força que efetivamente fez mover a caneta do autor: a tentativa de compreender um período especialmente conturbado da vida do seu pai, o mesmo Walter que faz de seu protagonista e testemunha das atrocidades dos momentos finais do conflito.
"O silêncio […] é no fundo um vazio que a vida algum dia preencherá com verdade"
É o que nos diz Rothmann, de passagem por Portugal para apresentar o livro no Festival FOLIO, em Óbidos: "O meu pai era uma pessoa muito silenciosa, muito melancólica, e eu quis perceber o porquê desse silêncio sobre aquela época da sua vida." É justamente sobre essa procura que incidem as primeiras palavras do livro – "O silêncio […] é no fundo um vazio que a vida algum dia preencherá com verdade" –, um prenúncio da tentativa do autor de construir uma ponte sobre este pequeno abismo na história da sua ascendência.
Afinal, como coloca na boca do pai, num prólogo surpreendentemente autobiográfico, "tu é que és o escritor". É, por isso mesmo, natural que o tema da violência, transversal a esta história, em que "quanto mais entramos na guerra, mais se adensa e agrava a narrativa", corra lado a lado com uma dimensão mais íntima, vulnerável e profundamente emotiva de Walter.
Acompanhamos o seu refúgio nas reminiscências que partilha com o melhor amigo, Fiete, a "emigração interior" por que passam à medida que a brutalidade vai escalando ou a idealização da relação à distância com Elizabeth (uma versão ficcionada da mãe de Rothmann), um romance que, apesar de "frio e pragmático, foi o que lhe permitiu suportar a guerra" – um "amor instrumentalizado para sobreviver".
A consciência do nazismo "já não se apresenta transversalmente na sociedade" e as "vozes que dizem que se deveria esquecer este período" soam em consonância com o "surgimento de movimentos de extrema-direita e de sentimentos racistas e antissemitas".
Não é por se focar no particular, no entanto, que negligencia o universal. Nos interstícios desta história de amor, catalogada em inúmeras cartas reproduzidas entre cenas para "compactar a narrativa" – "não sou fã de livros de muitas páginas", confessa –, encontramos referências ao "mito bíblico de Caim e Abel", porque "todas as guerras acabam por ser entre irmãos", à tragédia grega e, evidentemente, ao "peso do legado da guerra na sociedade alemã".
Rothmann conta que, hoje, apesar das preocupações de uma "camada intelectual", a consciência do nazismo "já não se apresenta transversalmente na sociedade" e as "vozes que dizem que se deveria esquecer este período" soam em consonância com o "surgimento de movimentos de extrema-direita e de sentimentos racistas e antissemitas". E mesmo que, para o autor, o livro tenha sido "acima de tudo" uma tentativa de se aproximar mais do pai, não deixa de esperar que, "nos leitores, tenha o efeito de contribuir para que estes acontecimentos não se repitam".
Morrer na Primavera
Ralf Rothmann
Ed. Sextante
240 págs.
€16,60