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"Crime nas Correntes d’Escritas". Leia o primeiro capítulo do romance polémico de Germano Almeida

A SÁBADO pré-publica o primeiro capítulo do mais recente romance de Germano Almeida que gerou polémica por retratar o festival literário Correntes d'Escritas e ter contado com ameaças de processo judicial. "Crime nas Correntes d'Escritas" nasce da natureza de observador minucioso do autor, que precisou apenas da sugestão de um outro participante para encarar aquele ambiente das Correntes como o cenário ideal de um crime. Nas livrarias a 8 de abril.

SÁBADO 01 de abril de 2025 às 07:00
DR

Foi no ano em que as ainda jovens escritoras Tânia Ganho e Gilda Barata participaram pela primeira vez nas Correntes d’Escritas que ocorreu o inesperado e misterioso desaparecimento do manuscrito que o veterano jornalista e também famoso ficcionista, Mário Zambujal, pretendia apresentar à direção do celebrado evento, pensa-se que com vista à obtenção de um patrocínio da parte da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim destinado à sua publicação.

Não que eu esteja a estabelecer qualquer relação de causa e efeito entre a presença das jovens escritoras nessa celebração com o misterioso sumiço do texto de Zambujal, tanto mais que nesses dias ambas ainda viviam completamente embevecidas, gozando as volúpias das suas recentes edições, no caso da Tânia o romance A Lucidez do Amor, a Gilda com o livro infantil A Semeadora de Estrelas, as duas muito louvaminhadas pela imprensa e pelos colegas, com muitas entrevistas tanto das rádios como das televisões e jornais, situação que à partida as devia colocar acima dessa suspeita de patifaria ou de qualquer comportamento menos digno. 

Mas no encontro desse ano elas não eram as únicas caloiras. Também esteve presente a Inês Botelho, ainda que como simples visitante, a qual, por coincidência, viria dias depois a encontrar, na sala de televisão do hotel Axis Vermar, o invólucro ou a caixa ou seja lá o que for, mas vazia, como se constatou depois, do CD que continha o desaparecido manuscrito do Mário Zambujal. A Inês mora na cidade do Porto, quase ali ao lado, e ia à Póvoa ainda a tempo de assistir à primeira mesa da manhã, que era sempre cerca das dez horas, e passava o resto do dia connosco, regressando a casa depois do jantar no hotel, às vezes mesmo depois da sessão de apresentação de livros e declamação de poesia que normalmente se segue à última refeição, como uma espécie de digestivo em forma de verso, ou então simples prosa poética que não poucos dos presentes já degustam mais ou menos sonolentamente.

É verdade que a Inês não é ainda escritora, é, digamos assim, simples aspirante ou então mera simpatizante da classe, embora esse pormenor não queira de facto significar absolutamente nada, pelo menos na abalizada e douta opinião do autonomeado detetive, Aurelino Costa, poeta e glorificado autor do futuro famoso livro Pitões das Júnias, homem culto e largamente viajado e bom conhe- cedor não só da Europa como também das antigas possessões portuguesas em África, particularmente Cabo Verde que visita amiúde, e que, mal tomou conhecimento da inqualificável ratonice levada a cabo contra o prestigiado jornalista, que ele muito admira e estima, facto esse comunicado pela diretora Manuela Ribeiro com voz solene e grave ao estupefacto público que enchia o Cine-Teatro Garrett, logo ali tomou posição sobre o assunto, declarando-o torpemente inadmissível e, portanto, necessária e severamente punível, e, com a sua voz forte de quase trovão, porque o que lhe falta em tamanho físico lhe sobeja em potência vocal, declarou suspeitos todos os participantes naquela edição das Correntes d’ Escritas, incluindo ele próprio, disse com tonitruante galhardia, batendo fortes panca- das do seu punho no largo peito, e se apresentou à direção do evento, nas pessoas da diretora Manuela Ribeiro e do vereador Luís Diamantino, afirmando-se apto, competente e disponível para tomar conta do assunto, investigar e descobrir e denunciar e até levar a castigo exemplar, se viesse a ser caso disso, o larápio salafrário sem vergonha que a tanto se tinha atrevido, desse modo manchando, ainda que apenas por breves horas, porque tinha a certeza de em pouco tempo desmascarar o traiçoeiro gatuno, desse modo manchando, dizia eu, o nome e a honra de uma instituição nacional que merecidamente ostentava o nome e a marca Correntes d’Escritas, já em idade pré-adulta e até àquela data ainda sem qualquer tipo de nódoa a macular-lhe a nobre pureza.

Lembro-me perfeitamente bem de que quem também estava presente nas Correntes d’Escritas desse fatídico ano do desaparecimento do manuscrito do Zambujal e que, apanhado no meio daquele burburinho, ouvia o Aurelino verdadeiramente extasiado pelas suas palavras e gestos exuberantes, foi o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, chegado dois dias antes e que, ao meu lado, sorria largamente das palavras e gestos exuberantes do Aurelino Costa, e só dizia com evidente admiração no seu sotaque carioca, embora seja baiano, Mas ele é um tribuno, um verdadeiro tribuno de palavra fácil e certeira, no Brasil diríamos dele ser um novo e moderno Ruy Barbosa, só que agora nascido na portuguesa cidade da Póvoa de Varzim. 

Era a primeira vez que o João Ubaldo ia às Correntes d’Escritas, mas ele e eu já nos conhecíamos de algumas outras festas literárias. Tínhamo-nos encontrado pela primeira vez em Paris e uma outra, anos mais tarde, mas agora mais demoradamente, na portuguesa cidade de Braga. O seu aspeto desengonçado e sorriso bonacheirão encantava, sobretudo porque tinha piada fácil e sempre inesperada. Lembro-me que dessa vez em Paris, para onde tínhamos sido convidados para um evento cultural, estávamos, uma meia dúzia de escritores palops, sentados no hall de um hotel frente a uma garrafa de calvados, aguardando que nos fossem buscar para levar para uma reunião qualquer que, entretanto, tardava a acontecer. E foi então que o jornalista Virgílio de Lemos, que por aqueles dias tinha estado a acompanhar-nos, talvez na falta de uma pergunta mais intelectual, lançou para nós o mote, De que falam os escritores quando se juntam em grupo? 

Acho que ninguém esperava tal pergunta e cada um foi emitindo a sua opinião de momento, mas sem grandes convicções, talvez apenas para não ficar calado. João Ubaldo ouvia os confrades, sorria pachorrento e nada dizia. Até que acabou por levantar a mão, nós calámo-nos e ele, naquele longo sorriso de voz arrastada, pediu a palavra: Posso falar? Sim, podia falar. Muito bem, nada disso que está aqui a ser dito, ria-se trocista, corresponde à realidade. Na verdade, os escritores, quando se encontram e se juntam, não falam nem de livros, nem de literatura, nem de política, nem de família. Falam de dinheiro, de pilins, bufunfas, enfim, os famosos e sempre reclamados direitos de autor: quanto te paga o teu editor?, ah, a mim o malandro só me paga tanto, o bandido que me explora sem compaixão… E todos começámos a rir dessa saída inesperada que até que poderia ser uma realidade que não tinha ocorrido a nenhum dos presentes. 

Também nos tínhamos encontrado uma segunda vez em Braga para falar de literatura e ali nos tínhamos divertido por longas horas às voltas com uma garrafa de uma aguardente velhíssima que o gerente do hotel tinha posto à nossa disposição por conta de ter como hóspedes dois escritores ilustres, explicou.

Quando o conheci pessoalmente já tinha lido alguns dos seus livros, primeiro, Viva o Povo Brasileiro, depois O Sorriso do Lagarto, Sargento Getúlio, mas desde o primeiro dia achei o João Ubaldo mais divertido pessoalmente que nos livros e lhe admirei o modo arrastado e sempre bonacheirão de falar, sempre com uma piada a propósito de fosse o que fosse, mas que contava como se não tivesse piada nenhuma, e ele mesmo ficava mais agradável porque falava muito com as mãos e os olhos pequeninos, o que provocava gargalhadas nos seus ouvintes. E agora, neste momento, dizia do Aurelino, Olha como ele fala bem, parece o Nabuco a discursar num comício, eu quero falar como ele, gostaria de aprender com ele, eu não tenho jeito nenhum para fazer isso quanto mais assim como ele faz. Ele é advogado, consolei o Ubaldo, eles treinam-se para essas cenas, têm lições de retórica e oratória. 

E de facto, e sem estar a ouvir esses nossos elo- gios incentivadores, Aurelino prosseguia no seu discurso acusatório, esmagando o incógnito velhaco: Porque isso não é um simples e inocente incidente a perturbar a excelente e duradoura dinâmica das grandes Correntes d’Escritas, não senhor, declarou empolado, trata-se de um crime, um crime puro e duro, temos que ter a coragem de chamar as coisas pelos seus nomes verdadeiros, não vale de nada usar falsos paliativos para aquilo ou aqueles que não merecem nem respeito, nem compaixão, sequer atenuantes legais. E como cidadãos responsáveis que somos, como jurista sénior togado que me honro de ser, licenciado em Direito pela gloriosa universidade de Coimbra, advogado de profissão, poeta e também ficcionista nas horas vagas, portanto confrade do vitimado autor despojado, tomo sobre mim o encargo, a tarefa, a responsabilidade de envi- dar todos os esforços e sacrifícios, aplicar todo o meu saber e inteligência e férrea e indomada vontade no objetivo último de descobrir e levar ao juízo desta nobre assembleia organizada em torno das magníficas Correntes d’Escritas e aqui reunida em supremo cenáculo durante esses gloriosos quatro ou cinco dias, o salafrário autor desse ato ignobilmente obsceno, para que ele seja devidamente exautorado e para sempre banido deste distinto convívio.

Luís Diamantino, há muitos anos vereador da Cultura da Câmara da Póvoa de Varzim, um dos promotores da festa que são as Correntes d’Escritas, está ouvindo o Aurelino com aparente muita atenção, concentrado nas suas palavras ferozes e seguindo-as com evidente interesse. Parece estar à espera de que o outro se cale para dizer alguma coisa acerca do inaudito desaparecimento do manuscrito, pelo que a todos surpreende: Olhem duas palavras que não ouvia há muito tempo, acaba por dizer sorrindo, primeiro tinha sido o renegado «salafrário» e agora é o safado «obsceno». Se repararem bem, continua dirigindo-se aos escritores que se tinham aproximado e ouviam Aurelino perorar, são palavras que estão muito rapidamente a cair em evidente desuso, praticamente já não são utilizadas por ninguém, não obstante nenhuma delas ser uma palavra que se poderia chamar de feia ou imprópria, mas mesmo assim qualquer dia já ninguém se lembra delas, felizmente que tu, diz, dirigindo-se diretamente ao Aurelino, também és poeta para além de advogado e sempre te vais lembrando de usar expressões difíceis que doutro modo cairiam no completo esquecimento… 

Mas também, com tantas palavras novas que estão por aí sendo inventadas todos os dias, ajuntou Manuela inconformada, forçosamente que algumas vão-se perdendo pelo caminho, estou a lembrar-me de palavras como… 

Ainda que consciente de que esse desvio de conversa não o ajuda a centrar-se na questão de que quer ocupar-se, Aurelino não resiste a acompanhá-los nessa digressão lateral, tanto mais que ele mesmo tem-se fartado de atacar essa inflação de palavras desnecessárias para a economia da linguagem e que só servem para atrapalhar e perturbar o ouvinte que, não poucas vezes, simplesmente se vê perdido no meio dessas verdadeiras tempestades auditivas: Sim, têm razão os dois, acaba por concordar, só nestes dois dias das Correntes já ouvi uns cinco ou seis palavrões novos, embora só tenha fixado dois ou três, mas, por exemplo, ouvi um tal palimpsesto, também ouvi empoderamento, resiliência, procrastinar… 

Riem-se os três e também alguns presentes desses verdadeiros inventos de vocábulos de que dizem ser campeão o Brasil, e citam palavras que em más horas estão forçando a entrada na linguagem comum e acabam ficando tristemente correntes.

Ainda discorrem mais um bocado sobre essa questão das palavras novas enquanto se prepara a mesa seguinte, que não é ainda passo e fico com o UNIVERSO, que é aquela em que devo tomar parte.

Mas, apesar de estar vivamente participando nessa discussão, como é aliás do seu natural, francamente Aurelino não gosta desse novo rumo que a conversa parece querer tomar, desse modo todos se esquecendo do drama principal que é o sumiço do manuscrito do Zambujal, pelo que delicadamente se permite solicitar nova concentração no grave assunto pendente. Teremos tempo de discorrer sobre as novas palavras e as novas ideias, concede enfático e de rosto sério, se calhar até seria bem pensado propor-se que a próxima edição das Correntes fosse exclusivamente dedicada à relembrança das palavras que estão a desaparecer do uso comum, contrapostas às novas que vão surgindo quase semana a semana. 

Olha que não é nada má ideia, apressa-se a concordar Luís Diamantino, olha que não está nada mal pensado, reforça, de facto estamos com mon- tes de palavras novas e por sinal nem todas bonitas, haja em vista, além das citadas «empoderamento» e «resiliência», a horrível expressão «zona de conforto», que ninguém sabe exatamente o que significa, mas na mesma se apoderou da linguagem corrente de pessoas insuspeitas de aderirem a trivialidades… Mas temos muitas outras de que não me lembro neste momento, perfeitamente que se podia fazer uma listagem mais ou menos exaustiva que os participantes nas próximas Correntes pediriam à Assembleia da República que decretasse o seu definitivo banimento da sociedade literária, sob pena de severas sanções aos prevaricadores, que poderiam ser logo propostas e discutidas, melhor que eu sabes tu que não há norma sem sanção, mas, por exemplo, os infratores, isto é, aqueles que fossem apanhados a utilizá-las, ficariam proibidos de falar durante um certo número de horas seguidas, ou mesmo durante dias em caso de reincidência, ou então serem obrigados a repetir a mesma palavra cem ou mesmo duzentas vezes seguidas e no fim lavarem a boca com um dentífrico português de referência… 

Nitidamente Aurelino não gosta desse desvio irónico que o assunto está a tomar, sobretudo agora que o Diamantino resolveu derivar a conversa para um modo que mais parece de chacota que uma situação de seriedade. Sabe uma coisa, vereador Luís Diamantino, diz Aurelino com voz grave, acentuando bem cada palavra, estou a achar que o senhor está a encarar esse roubo com excessiva ligeireza, para não dizer falta de seriedade, ou pelo menos não parece nada preocupado com esse crime hediondo e chocante… 

Mas Diamantino continua sorrindo algo trocista, claramente dando pouco crédito à conclusão de que tenha havido qualquer delito no desaparecimento do manuscrito do Mário Zambujal, que é bem capaz de ser um artista distraído, que deixou as folhas ou o CD, ou seja o que for, algures em qualquer lugar de que agora não se lembra. Roubo esse que estás a supor que aconteceu, diz Diamantino ao Aurelino, mas sobre o qual não tens ainda nenhum dado factual em que assentar as tuas deduções, quanto mais investigações, repara que nem sequer suspeitos tens ainda! 

Alto aí, interrompeu-o Aurelino cortante, suspeitos temos e muitos, você incluído é em tese um suspeito, não obstante fazer parte da direção desse magno evento que nenhum de nós deseja ver manchado com o desaparecimento, para não dizer furto, de uma obra d’arte, uma peça sem dúvida valiosa, tendo em conta o valor de mercado do seu autor e os livros com que nos tem agraciado, haja em vista a Crónica dos Bons Malandros, um livro que vai já em centenas de edições e continua a ser lido com tanto interesse como se fosse a Bíblia sagrada… Centenas de edições, estranham ao mesmo tempo a Manuela Ribeiro e o João Ubaldo. A Manuela até aí tem estado calada, ouvindo os outros, mas agora franze os lábios duvidosa dessa afirmação tão perentória. Eu nunca ouvi falar disso, diz admirada, e olha que ando a par dessas coisas sobre edições de livros, recebo sempre informações atualizadas sobre novas edições, quer de livros quer de revistas, faz parte das nossas obrigações termos um registo rigoroso… Pronto, contemporiza Aurelino, deixo em dezenas se te agrada mais, aliás isso é um pormenor sem importância alguma serem dezenas ou centenas, não nos percamos nessas pequenas minudências que mais não são que subtilezas de linguagem, antes avancemos para a realidade de resolver esta situação que envergonha quer esta magna festa dos escritores e do livro quer a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, e até a própria cidade do grande Eça de Queiroz, que neste momento deve estar a dar saltos na sua gloriosa tumba em Santa Cruz do Douro* caso esta infausta notícia tenha já chegado onde ele se encontra no seu eterno repouso. Sim, sorriu de novo Diamantino, com as novas tecnologias que por aqui pululam, os novos meios de comunicação existentes no mundo, é quase garantido que a esta hora ele já está ao corrente de toda a confusão que está a percorrer a sua cidade por causa do inesperado sumiço do manuscrito do escritor Mário Zambujal.
 

* Quando este livro foi escrito, os saltos aqui referidos tiveram lugar, por decisão do Supremo Tribunal Administrativo, no Panteão Nacional, onde agora, salvo incidentes como aqui relatado, eternamente repousam (N. ed.). 

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