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Madalena Sá Fernandes responde a João Pedro George: "Não falou do livro mas do meu corpo"

O comentário de João Pedro George sobre a autora iniciou um debate sobre machismo e misoginia no meio literário português. Sá Fernandes chamou-lhe uma "análise grotesca", e George fala em "mal-entendido".

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Madalena Sá Fernandes responde a João Pedro George: 'Não falou do livro mas do meu corpo'
Pedro Henrique Miranda 27 de março de 2025 às 17:45

Na terça-feira, 25 de março, a Livraria Martins, que sedia opodcastQuinteto Literário, de conversas entre personalidades da literatura portuguesa, publicouum comunicadoem que, apesar de se comprometer "com a diversidade de pensamento e com o respeito por todos os intervenientes do meio literário" se demarcava "de certas declarações proferidas por um dos intervenientes", nas quais não se reviam.

O comunicado referia-se ao episódio 3 do certame, com os autores Ana Bárbara Pedrosa e João Pedro George, que já estava no ar desde 26 de fevereiro, mas que só no domingo foi alvo de atenção generalizada do público por intermédio de uma das visadas - a também autora Madalena Sá Fernandes, cujo romance de estreia, Leme, autoficção centrada numa relação amorosa tóxica e disfuncional, foi um dos temas da conversa.

Partilhando um excerto da conversa que pode ser vista na íntegra no YouTube, a autora acusa João Pedro George de "misoginia e machismo sem a menor vergonha" pelas suas declarações, que incidem menos sobre o teor literário da obra de Sá Fernandes do que sobre a sua imagem pública divulgada nas redes sociais.

No vídeo, George comenta que começou "a ver o Instagram dela, e depois a imagem não combinava com o tema" da violência doméstica, "um tema duro, difícil", acrescentando que não esperava "necessariamente uma tipa deprimida e gótica, com olheiras, mas também não estava à espera de encontrar uma pessoa semi-nua numa banheira com o livro na mão", e impugnando a exibição do "corpo muito exuberante, com roupas que põem à mostra os atributos".

"Ouçam porque vão aprender que há um rosto para a violência doméstica", começa a resposta de Madalena Sá Fernandes. "É só mais um homem triste incomodado porque eu sorrio. Porque tenho fotografias de calções ou de macacão com flores", acrescenta, esclarecendo que "nunca rebateria uma crítica literária", mas que isto se tratava de uma "crítica às fotografias de Instagram, à vida pessoal, e a extraordinária crítica ao sorriso de quem sofreu".

George, também professor, cronista e crítico literário conhecido como polemista e crítico do compadrio no meio literário português, acrescentou ainda na conversa que Sá Fernandes - filha do político José Sá Fernandes, e que ganhou notoriedade como influenciadora digital no Instagram antes de se estrear na escrita -, gozava de "toda uma campanha, toda uma máquina" para a divulgação dos seus livros e do "beneplácito" de figuras proeminentes da cultura portuguesa, como Fernando Alvim, Gonçalo M. Tavares ou Afonso Cruz.

"Ela é de facto uma escritora do seu tempo, porque ela sabe utilizar as ferramentas e os mecanismos que hoje em dia fazem vender muitos livros - está no TikTok, no Instagram, uma presença constante da imagem dela", acrescentou ainda o escritor. "Com tanto networking, ela já deve conhecer tanta gente do meio literário, que, como autora de autoficção, estou na expectativa de que ela escreva um livro de autoficção com o seu conhecimento sobre o meio literário e as personagens todas que ela conhece."

"Uma análise grotesca"

À SÁBADO, Madalena Sá Fernandes conta por telefone que não tinha tido nenhum contacto prévio com João Pedro George à exceção daquele que o próprio descreveu no vídeo - numa Feira do Livro, em que ambos assinavam livros lado a lado e em que Sá Fernandes tinha, segundo George, "uma fila interminável de teenagers e groupies" enquanto que a sua estava vazia. 

A autora diz que o vídeo foi-lhe enviado originalmente pelo Instagram, e que, quando viu que George segurava o seu romance, Leme, teve "curiosidade em saber o que ele achava acerca do livro". E completa: "Essa curiosidade mantém-se, porque ele não falou do livro mas das minhas fotos, do meu corpo, da minha vida pessoal, numa análise grotesca."

Acredita que o episódio é emblemático do machismo que ainda se vive em Portugal, "no meio literário e não só". "Acho lamentável, porque eu sou escritora, estou a tirar um mestrado em literatura, escrever é a minha paixão, e é uma tristeza que seja este o tema", opina, acrescentando: "A única coisa em que ele tem razão é que sou uma escritora do meu tempo, e neste tempo isto é inadmissível."

Contactado pela SÁBADO, João Pedro George recusou prestar mais declarações, remetendo-nos para a mensagem que publicou no seu Facebook e na caixa de comentários da publicação de Sá Fernandes. Nela, afirma que houve um "mal entendido" e que está ciente "de que referir a aparência de uma mulher tem um longo historial na cultura patriarcal e machista e que convocar esse elemento numa conversa pública é errado e infeliz".

O autor pede "desculpa por tal associação de ideias", dizendo que não era essa a sua intenção e que não pretendia "estabelecer uma correlação entre a qualidade da obra e a sua promoção nas redes sociais". O sociólogo de formação esclarece ainda que a sua abordagem "tem visado quase sempre a literatura como fenómeno social e como fonte de análises sociológicas", admitindo que a sua "liberdade crítica, por vezes sarcástica, possa criar desconforto" e voltando a "lamentar a referência adjetivada à forma como a autora divulgou o livro debatido no programa".

"Fez bingo no cartão do macho ultrapassado"

A denúncia acabou por ganhar uma dimensão que a autora confessa não ter esperado, com milhares de pessoas a manifestarem mensagens de apoio na caixa de comentários, incluindo várias figuras públicas. "Fez bingo no cartão do macho ultrapassado", disse a artista e rapper Capicua. "Duvidar do mérito sempre, dizer que deve ser cunha, pedir o recato e a cabeça baixa das vítimas, tudo para não ter de lidar com o talento de uma mulher bem sucedida."

"Uma mulher com talento quando é bonita continua a incomodar muita gente", apontou a atriz Inês Castel-Branco, ao passo que a médica psiquiatra Inês Homem de Melo optou por celebrar "uma mulher opinativa, livre e exuberante em toda a [sua] beleza", e o humorista brasileiro Gregório Duvivier por criticar "o suco de ressentimento com misoginia" do vídeo. Em sentido semelhante vieram comentários da cozinheira e apresentadora Filipa Gomes, do pianista Filipe Melo, da atriz e apresentadora Inês Aires Pereira ou do humorista Hugo van der Ding.

"Felizmente estou a receber muito apoio", reconheceu Madalena Sá Fernandes à SÁBADO. "Não estava à espera que tomasse estas proporções, e o apoio tem sido tanto de mulheres quanto de homens, o que me está a dar algum sossego em relação ao estado do mundo", remata. 

Quando perguntamos o que gostaria de alcançar com esta denúncia, responde que espera "que se consiga aprender a primeira aula de literatura, a separação entre autor, obra, narrador e personagens", bem como que se "pare de fazer este tipo de análise absurda à imagem e aparência física de um autor como forma de desvalorizar o seu trabalho".

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