É difícil exagerar o fenómeno que O Auto da Compadecida (2000) foi no Brasil. Recortado da minissérie com o mesmo nome da Rede Globo, de quatro episódios e estreada no ano anterior, o filme, em versão mais curta, tornou-se num dos mais vistos do país, reavivando a memória coletiva sobre os difíceis tempos do cangaço - os cowboys armados do sertão nordestino, personificados na História no anti-herói folclórico Lampião.
O Auto da Compadecida fez, porém, mais do que isso: prestigiou um cinema que ainda lutava por reconhecimento e contribuiu para fazer de Selton Mello (o Rubens Paiva de Ainda Estou Aqui) e Matheus Nachtergaele (o Cenoura de Cidade de Deus) dois dos maiores e mais reconhecidos atores brasileiros.
Baseada em várias obras teatrais de Ariano Suassuna, a comédia segue as desventuras de Chicó (Mello), um camponês romântico mas covarde e pouco inteligente, e João Grilo (Nachtergaele), o seu parceiro astuto e engenhoso que congemina elaborados engodos ao patronato, Igreja ou Forças Armadas para escapar à miséria - um dispositivo para criticar estas instituições no contexto de extrema pobreza no nordeste do Brasil em inícios do século XX.
No clímax do auto de moralidade, personagens-tipo como a mulher adúltera, o patrão avarento e o padre corrupto são julgados pelos seus pecados no purgatório - um momento semelhante à obra portuguesa Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente -, presidido por uma já icónica Fernanda Montenegro como Virgem Maria, a Compadecida.
A força do seu humor, a complexidade dos esquemas de João Grilo e o poder das performances fizeram desta uma das mais celebradas comédias brasileiras, cujo impacto nas audiências parece ter persistido no tempo - até muito recentemente, era, graças à mobilização do público brasileiro, um dos filmes mais bem classificados na rede social de cinema Letterboxd, conotada com uma nova geração de cinéfilos.
Talvez por isso, mas também para apelar às gerações mais velhas que idolatraram o filme, se tenha decidido regressar ao universo do Auto da Compadecida, pelas mãos do mesmo realizador e argumentista, Guel Arraes, com Nachtergaele e Mello de volta, e com a junção ao elenco de novas estrelas, como Taís Araújo, que assume a personagem da Compadecida.
É justamente o reencontro de João Grilo e Chicó em Taperoá, a (verdadeira) vila do estado da Paraíba que foi palco do primeiro filme, que motiva o arranque da narrativa. Vinte e cinco anos depois, as desigualdades sociais continuam flagrantes, mas há espaço para novos fenómenos, aproveitados para denunciar alguns desequilíbrios da cultura brasileira contemporânea: as eleições para prefeito, que expõem as dinâmicas de uma política local em que ainda grassa muita corrupção, o surgimento da rádio, que evidencia a imposição de créditos predatórios aos mais pobres, ou a mercantilização e turistificação de tudo - incluindo da própria Igreja.
Trailer O Auto da Compadecida 2
É nestes momentos, em que adapta à modernidade a crítica mordaz que tão bem serviu o primeiro filme, que O Auto da Compadecida 2 é mais bem-sucedido. Na maior parte da sua duração, no entanto, o filme cai na tentação de reciclar as ideias do seu predecessor, uma tentativa gorada de agradar os fãs do primeiro filme na medida em que, a cada etapa, relembra-nos do quão melhor era a versão original.
As risadas que o filme provoca, por exemplo, são de reconhecimento e não tanto de surpresa - esse elemento tão essencial para a comédia - e o argumento é tão próximo do original em certos momentos que dá a impressão de ter sido reescrito, em vez de reimaginado.
O esforço por honrar o carinho que os brasileiros mantêm pelo filme é evidente. Com maior orçamento, as passagens mágicas da história, feitas com artifício à primeira, são desta feita mais dinâmicas e envolventes, enfatizando o seu caráter alegórico. Mas ainda que haja vários piscares de olho que remetam ao enredo do antecessor, funcionando este sempre em diálogo com aquele, as piadas, narrativas e a própria trama são demasiado semelhantes para fazer deste um filme verdadeiramente imperdível - por oposição, por exemplo, a revisitar o original, na sua versão abreviada ou na televisiva, de três horas, que permanece tão vibrante e incisivo quanto quando foi lançado.