Miguel de Lemos é uma figura rara na academia portuguesa. Propôs no ano passado a criação de uma comissão para investigar o assédio moral e sexual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), um problema sobre o qual fala abertamente em público. Não tem a sua posição profissional na FDUL garantida, antes pelo contrário – aos 43 anos é professor assistente e candidato a doutoramento na instituição onde muitos agora o olham de lado. Foi alvo de um processo disciplinar, entretanto arquivado. Só aceitou dar esta entrevista por escrito. Numa altura em que se acumulam denúncias de assédio na academia, mostra-se cético sobre o alcance real da mudança – e põe a sua esperança nos alunos.
Além do processo disciplinar sentiu outras formas de pressão após o papel que teve na comissão sobre assédio na FDUL?Sim existiram várias, de natureza diversa, e que não gostaria aqui de explorar na sua totalidade. Não me furtando à questão que coloca, importa referir que desde o início do ano passado a minha situação na FDUL mudou radicalmente. Colocou-se, desde logo, a questão da minha recontratação como assistente convidado, no verão passado. Paralelamente fui alvo de inúmeras recriminações pelo facto de falar abertamente sobre o meu caso e os casos de assédio moral e sexual na FDUL aos órgãos de comunicação social. Pesem embora essas opiniões de alguns professores, e é como meras opiniões que qualifico esses comportamentos de feição censória, é importante referir que a FDUL é uma instituição de ensino superior pública, e que deve, por essa razão, estar sujeita a princípios de transparência e escrutínio.
Nos artigos sobre assédio na academia tivemos dificuldade em pôr pessoas a falar sem ser sob anonimato. Porque há tanto medo nas universidades?As pessoas não têm propriamente "medo". Sabem é que, atendendo à inexistência de procedimentos imparciais, dentro ou extraintituição, dificilmente conseguem que os seus casos sejam investigados com transparência e garantisticamente. Não creio que os académicos sejam particularmente "medrosos". As dinâmicas de poder nas instituições, o investimento de anos, por vezes décadas, nas suas carreiras e a impossibilidade de facilmente mudarem de instituições tornam difícil um exercício pleno de liberdade sem olhar às consequências que o questionamento ou a denúncia possam trazer.
Há uma combinação de duas forças na FDUL: muitos professores precários e outros há décadas na mesma faculdade, fazendo por vezes parte de linhagens familiares de docentes. A interação destas duas forças amplia o factor medo e desencoraja professores e alunos de falarem abertamente?A realidade é complexa. Verdadeiramente não existem "duas forças" que, da leitura que faço da questão, se contrapõem. Em primeiro lugar porque ainda que 40% dos actuais docentes da FDUL sejam assistentes convidados, com vínculos laborais precários estes não se constituem como um corpo coeso e unido. Em razão da organização interna da Faculdade, em grupos científicos, há realidades e níveis de precariedade distintos, tendo, deste modo, dificuldade em identificar este grupo de mais de uma centena de pessoas como uma "força". Nesse sentido, destaco factores que mitigam a precariedade, como sejam bolsas, que são atribuídas por institutos que operam na órbita da FDUL, criando-se assim, dinâmicas de fidelidade a determinados grupos e professores, que contribuem para a situação actual de falta de abertura e liberdade. Destaco, igualmente, as dinâmicas laborais externas que contribuem, igualmente, para o enfraquecimento deste grupo. Assim, seja pela atribuição das referidas bolsas, ou de vantagens no mercado laboral não universitário, cujos gate-keepers são, em muitas das vezes, professores, parte significativa destes 40% de docentes, aderindo a lógicas que se aproximam de um discipulato-vassálico conseguem superar as dificuldades da precariedade que a carreira oferece. Aí surge a opção: aderir a este modelo, assegurando uma progressão de carreira e provas académicas sem sobressaltos, ou questionar e exercer a profissão com dignidade, norteando esse exercício por valores de liberdade e justiça, que se prendem directamente com a natureza das profissões jurídicas para as quais formamos os nossos alunos. No outro espectro, importa referir que também a "força" dos docentes contratados não é una, nem coesa. Dada a natureza muitíssimo competitiva da profissão e ao afunilamento das carreiras, é bastante difícil que a generalidade dos Professores chegue ao topo da carreira. Esta questão não é particular da Academia. Os problemas surgem quando as progressões deixam de ser feitas pelo mérito da investigação ou da pedagogia e se estribam em realidades (que deveriam ser) exógenas à faculdade, como as relações familiares, a projecção que determinado elemento ganha numa determinada área profissional, na vida pública portuguesa, designadamente na política, e as vantagens que pode trazer ao grupo que lhe permite progredir dentro da instituição.
É este tipo de receio que explica o silêncio à volta de casos como o de Boaventura Sousa Santos, comentado há anos? Há "intocáveis" também na FDUL?Há pessoas que se podem achar, e se acharam durante décadas, intocáveis. Tiveram e têm as suas carreiras alicerçadas num conjunto de fatores que à luz do sentimento ético e jurídico atual são reprováveis. Falo de casos de assédio moral, sexual, mas também na lógica de troca de favores e de influências, que marca a nossa academia. Um exercício, que coloco no plano científico, que tivesse como objeto o estudo das últimas décadas de gestão da FDUL, da progressão de carreiras, da rede de interesses que gira à sua volta, chegaria certamente a conclusões importantes para a compreensão da situação atual da academia, mas também para os universos onde esta se projeta: da política, aos negócios, passando pela sempre presente mediação dos escritórios de advogados. Para combater as realidades que são o pano de fundo das questões que coloca – o assédio moral e sexual – é necessário perceber que estes comportamentos são resultado de dimensões de poder interno e externo à Faculdade. E, nesse sentido, importa questionar se existe verdadeiramente vontade de escrutinar a instituição.
Há também mais consciência sobre o que não é aceitável?Esse devia ser o ponto de partida para esta discussão. Também por isso, no ano passado, quando começámos finalmente a falar destas realidades na FDUL, propus que fosse adotado um manual de boas práticas que vinculasse todos os membros da nossa comunidade académica: estudantes, docentes e funcionários. Das conversas que tive ao longo deste tempo registo que a maior parte das pessoas, inclusivamente docentes, não sabem (estes porque não querem) distinguir o que são situações de assédio moral e/ou sexual. A inexistência destes códigos de conduta permite a sempre oportuna justificação de "mal-entendidos" ou "incompreensões mútuas".
Sente que uma aluna ou um aluno que sejam alvo de assédio moral ou sexual têm hoje mais confiança do que antes para apresentarem uma queixa na FDUL?Não. E nesse sentido os nossos alunos, em especial um grupo muito activo de alunas, que tomou a dianteira na identificação destes problemas e na forma como a FDUL poderia resolvê-los, não viram as suas propostas acolhidas. Infelizmente, também aqui a FDUL, a sua Directora e os órgãos, na minha opinião, falharam. Não escutaram os estudantes, apressaram-se numa fuga para a frente, com anúncios fugazes de intenções, que não deram resultados.
A ministra Elvira Fortunato, que vem da academia, não acredita que há represálias contra quem reporta assédio. Tem razão?A Senhora Ministra já o ano passado chegou tarde a este problema. Desde então que nada foi feito pelo Ministério da Ciência nesta área, que marca indelevelmente a Academia portuguesa, como temos visto. Não sei a que Academia a Professora Elvira Fortunato se refere, não é certamente aquela que eu conheço, que outros professores da FDUL conheceram, com processos disciplinares e discriminações várias, que as minhas alunas e os meus alunos conhecem, que membros de inúmeras outras instituições conhecem pelo País inteiro.
As universidades têm capacidade para se reformarem? Ou tem de ser a ministra a pressionar?Infelizmente os casos mais mediáticos de que vamos tendo conhecimento apontam no sentido inverso, com instituições que entram em modo de autopreservação (preservação de alguns dos seus docentes), que não admitem o escrutínio, que não adotam mecanismos de combate a estes problemas, nem se reformam. É evidente que a tutela deveria ter um papel ativo. Importaria rever o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior e o Estatuto da Carreira Docente Universitária, diminuindo a precariedade, prevendo a existência da figura de whistleblowers, instituindo códigos de conduta e boas práticas ao nível nacional.
"Extrativismo intelectual" é um termo novo, mas o problema é antigo. Há muito disso na FDUL?A FDUL não é diferente de qualquer outra instituição de ensino superior e, nesse sentido, terá estas dinâmicas de aproveitamento do trabalho intelectual alheio. Conheço casos de colegas que já o sentiram. Cabe-lhes a eles, caso queiram, denunciar tais situações.
A nova geração, educada num paradigma diferente, está a chegar às faculdades. O que vemos é parte da mudança geracional?A maior parte dos casos de assédio moral na FDUL parecem apontar, como foi referido em sede de conselho pedagógico, para queixas contra jovens assistentes. São comportamentos miméticos de uma realidade que conheceram enquanto alunos, ou que importam de ambientes profissionais menos salubres, usando os alunos como válvula de escape para as pressões a que também eles estão sujeitos. Quando se incute uma certa ideia "aristocrática" a um conjunto de pessoas, sendo a "excelência" idolatrada à exaustão, não é de admirar que se gere um corpo docente muitíssimo exigente, incapaz, também pela sua falta de experiência e formação pedagógica, de gerir as frustrações originadas pela relação com um corpo discente academicamente menos preparado, contexto em que nos surgem os relatos em que na FDUL se grita, humilha, ofende na sala de aula. No que diz respeito aos nossos alunos: espero que sim. Temos de promover uma cultura de responsabilização, em que as pessoas assumam os seus atos e percebam que nada têm a perder, antes pelo contrário.
A sensação que temos após termos noticiado casos de assédio, sobretudo moral, é de que não há consequência e que o sistema não muda. Sente o mesmo?Sim, na FDUL sinto o mesmo. Desde que determinada pessoa, um assistente ou Professor, dentro da lógica de fidelidade que referi, se coloque num grupo (aqui em sentido genérico e não em referência aos grupos científicos da Escola) que o proteja não há consequências. Há práticas de determinadas pessoas que são reiteradas, surgindo queixas, umas formais outras informais, todos os anos, continuando essas pessoas a lecionar. Deixo aqui um apelo aos nossos estudantes, de combate à descrença e ao conformismo que se traduzem num "nada vai mudar" e, acima de tudo, que não permitam estes abusos, que se juntem, que se apoiem, que façam queixas colectivas caso sejam vítimas destas situações, pois, no actual contexto em que vivemos, só verdadeiramente o número os protege. Alguém questionará uma turma de 30 alunos que relata que um determinado professor chama "burro" a um aluno ou que diz que "o curso de direito não é para pobres"?