O que está dentro deste banco pode salvar-lhe a vida
Fragmentos de osso, restos de tumor, sangue, urina ou até cabelos são hoje determinantes na investigação científica. Na Nova Medical School, em Lisboa, há um repositório destas amostras biológicas que permitem testar novos medicamentos, métodos de diagnóstico e dispositivos médicos. O biobanco arrancou há um ano e já tem vários projetos em curso.
Neste banco está armazenado algo bem mais valioso do que dinheiro. Há sangue, saliva, fezes, urina ou fragmentos de osso. Também estão armazenados desperdícios de cirurgias, como pedaços de tumores que são retirados para biópsia. Ainda que pareça improvável, estas amostras podem salvar-lhe a vida. Como? Permitem testar novos medicamentos, métodos de diagnóstico e mesmo dispositivos médicos. Essa é a grande mais-valia dos chamados biobancos – estruturas onde são guardadas amostras biológicas para serem usadas para investigação médica.
Situado no edifício amarelo do polo de investigação da Nova Medical School, em Lisboa, Maria Assunção e Joana Alves compõem a equipa que faz funcionar o biobanco desta faculdade – e que cumpriu agora um ano de existência. Não é o único em Lisboa, nem no país, mas tem uma particularidade. "Faz a ponte entre a investigação pré-clínica [aquela realizada em laboratório com células e tecido humano] e a investigação clínica [os ensaios em pessoas] que fazemos na faculdade", explica à SÁBADO o investigador João Conde. Traduzindo: atalha o tempo necessário até um novo tratamento chegar ao público.
"Essa é a grande missão dos biobancos, que estas amostras recolhidas possam ser usadas por outros e com isto a investigação, em vez de partir do início e ir recolher amostras em pessoas, pode aproveitar estas que já foram recolhidas e têm informação que pode ser útil e que pode fazer avançar aquele estudo mais rápido", complementa a coordenadora técnica do CHAIN Biobank, Maria Assunção.
A coleção de amostras impressiona: são 41.452, recolhidas de 11.751 pessoas. Estão guardadas em duas arcas frigoríficas numa sala no piso 0 daquele edifício, que é de acesso restrito (apenas a equipa consegue entrar) e tem sondas de monitorização remota de temperatura. Há uma terceira arca de backup caso haja alguma avaria. A sala está a 18 graus e a temperatura dos frigoríficos é de -80.
As arcas são compostas por quatro grandes gavetas, cada uma com 30 compartimentos e, cada um deles, capacidade para cinco caixas. Cada caixa comporta até 81 pequenos tubos com material. Há um código de cores nas caixas (vermelho, verde e amarelo), que tem a ver com o acesso às amostras – por exemplo, as vermelhas não podem ser distribuídas nem divulgadas. Neste momento, as arcas têm dois terços da capacidade ocupada.
Para manipular as amostras – guardadas em pequenos tubos de 2ml, cada arca tem capacidade para 41 mil destes recipientes –, Maria Assunção precisa de calçar dois pares de luvas: umas de nitrilo azuis escuras e por cima outras térmicas, até ao cotovelo, que impedem que o frio penetre. "À partida, a ideia é não descongelar as amostras quando as congelamos. Porque, quando se descongela só se usa uma vez"", diz. Por isso, cada amostra recolhida é dividida em quatro porções – se for urina são seis.
Entre o material biológico recolhido, que pode ser líquido (como sangue, saliva ou urina) ou sólido (como os tais restos de tecido humano recolhido em cirurgias), só o cabelo não precisa de estar no frio. É um dos poucos materiais que a faculdade ainda não tem na coleção, embora esteja previsto num dos projetos que têm em curso. "Pressupõe uma recolha um pouco invasiva, é preciso quase 2 centímetros de cabelo, ainda é uma área grande e tem de ser cortado na mesma zona", explica a investigadora.
Uma coleção de ossos
Há outros detalhes curiosos na coleção. Por exemplo, um conjunto de 3.180 amostras recolhidas durante a pandemia, de pessoas infetadas com o coronavírus e outras saudáveis. Naquela altura, a Nova Medical School tinha montado um centro de diagnóstico para as pessoas se testarem – tinham um protocolo com a Madeira e com a Santa Casa da Misericórdia. Outra coleção fora do vulgar é de osso, recolhida no âmbito do estudo de doenças reumáticas a 500 pessoas que colocaram uma prótese da anca.
A maioria das amostras é recolhida nos hospitais a pessoas com alguma doença – menos de 10% da coleção do biobanco pertence a pessoas saudáveis – e aquelas que existem em maior número são as de sangue. A média de idade dos dadores é de 48 anos e há mais mulheres do que homens (62% do sexo feminino e 38% do masculino).
É num laboratório no piso 2 do edifício que as amostras são recebidas e processadas. Vêm em geleiras acondicionadas com placas de gelo seco. Além de Maria Assunção e de Joana Alves, esta quarta-feira, 29 – quando a SÁBADO visitou as instalações do biobanco –, havia um terceiro elemento: o estagiário Alexandre Teixeira. Há uma mesa logo à entrada, à esquerda, onde as investigadoras confirmam, em primeiro lugar, se as amostras vêm conforme os critérios de qualidade. Têm de usar luvas, bata e o cabelo apanhado. "Consoante o material podem também ser precisos óculos, se tivermos de macerar a amostra, por exemplo", diz a coordenadora, Maria Assunção.
Além daquele laboratório há outro, com nível de biossegurança 2, para processar amostras em que haja risco de contaminação. O circuito por que passa o material – receber, registar e processar – até ser congelado leva cerca de uma hora. Se for preciso extrair o DNA é preciso mais tempo – umas 4h. No laboratório há vários aparelhos para esse tipo de operações: entre um micro-ondas, um termociclador (a máquina que faz os testes PCR) e uma centrífuga. Por exemplo, no caso do sangue é preciso centrifugar para separar os seus constituintes (sangue, plasma, soro, glóbulos brancos e plaquetas).
Há dois tipos de informação que são sempre recolhidos: clínica, que diz respeito a quem doou, e do material. O biobanco tem uma plataforma própria onde se regista a hora da recolha, quem recolheu, a temperatura a que foi feito o transporte, o tempo desde a colheita até à entrega, a avaliação visual da amostra, o código que é atribuído e o local onde é armazenada. Quanto aos dados clínicos, a doação é anónima e apenas fica registado a idade, o género, a condição de saúde (se tem uma doença e qual) e a medicação que a pessoa toma.
O biobanco tem quatro projetos a decorrer e outros cinco em comissões de ética para serem aprovados – como está envolvido material biológico é sempre preciso este tipo de procedimento. Um deles é com o Hospital de São José, em Lisboa: trata-se de um estudo sobre sépsis (uma infeção generalizada que pode ser potencialmente fatal). "Está a ser feito com doentes em coma, as amostras são recolhidas durante o internamento para tentar encontrar preditores de falência de órgãos ou de recuperação, os chamados biomarcadores", explica Maria Assunção. Moléculas ou proteínas que ajudam a prever, diagnosticar e tratar doenças, e também a desenvolver fármacos.
A cada paciente são colhidas até sete amostras em alturas diferentes. "Este tipo de estudo chamado longitudinal é muito útil. No UK Biobank, do Reino Unido, fizeram um com meio milhão de participantes a que recolheram amostras de 10 em 10 anos. Conseguiram encontrar marcadores de doença de Alzheimer sete anos antes de se desenvolver a doença. É espetacular", diz a cientista.
Doe sangue e urina
Outra grande área de investigação da Nova Medical School é a das doenças hereditárias da retina, um grupo de condições oculares raras que levam à cegueira. "Há aqui vários grupos a testar não só quais os mecanismos por trás da organização da retina, as células envolvidas que são primeiro degradadas e também mais facilmente regeneradas, mas também novas terapêuticas na retina para a regeneração", diz João Conde, subdiretor para a investigação da Nova Medical School.
"A criação de um banco de olhos humanos pode ajudar a decifrar algumas destas coisas", explica, o que dá a perceber a utilidade e aplicabilidade destas amostras. Quanto aos outros dois projetos, um é sobre a doença de Ménière (um distúrbio do ouvido interno) e o outro de âmbito internacional sobre a artrite psoriática – um tipo de artrite crónica que atinge pessoas com psoríase. "Há vários países europeus a recolherem amostras", diz a coordenadora Maria Assunção.
Permite fazer todo o percurso desde a descoberta de novas moléculas até à preparação para ensaios clínicos de terapêuticas, métodos de diagnóstico e dispositivos médicos.
João Conde, subdiretor para a investigação da Nova Medical School
Cargo
A existência de repositórios como este é mais importante do que à partida se possa supor. "Permite que consigamos fazer todo o percurso desde a descoberta de novas moléculas, novos biomarcadores, até à preparação para ensaios clínicos de novas terapêuticas, novos métodos de diagnóstico, novos dispositivos médicos", explica João Conde. Uma das áreas em que a Nova também está a investir é nas doenças oncológicas, através de hospitais públicos e também privados.
Num ano, o CHAIN Biobank da Nova Medical School recolheu 769 amostras. As doações podem acontecer de duas formas: através de projetos de investigação, com o consentimento informado dos pacientes, ou por campanhas abertas à comunidade. Ainda em 2025, na segunda metade do ano, a faculdade planeia realizar a primeira campanha para angariar doações de pessoas saudáveis. Será feita recolha de sangue e de urina (os materiais mais fáceis de colher) e talvez também de saliva – que implica deixar escorrer baba para um frasco.
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