Listas de listas
O ser humano é um implacável classificador. Não pode dispensar as listas. Não passa sem elas. As listas são inerentes ao cérebro humano, traduzem o nosso impulso de, simultaneamente, unir e demarcar, aproximar e afastar, associar e dissociar
Em 1975, um crítico literário perguntou a Augusto Monterroso, escritor hondurenho naturalizado guatemalteco, que sensação lhe produzia ser considerado um humorista. O criador de "Dinossauro" (tido como o conto mais curto da história da literatura) disse que lhe provocava uma sensação agradável, "não pelo de humorista, mas sim pelo facto de ser classificado. A ordem fascina-me".
Monterroso, em duas palavras — não é por acaso que o reputam de mestre dos textos rápidos, breves e concisos —, resumiu uma verdade intemporal: o ser humano adora classificar, sempre mostrou uma forte tendência para catalogar e estabelecer categorias. Categorias de animais, de plantas, de doenças, de causas de morte, de tipos de chá, de posições sexuais (de missionário, de tesoura aberta, de dança das borboletas ou de Moisés abre o mar vermelho, entre outras), de síndromas (como a síndroma do cabelo impossível de pentear ou a síndroma da pronúncia estrangeira, que afecta as pessoas que falam a sua língua materna com uma pronúncia estrangeira) ou de fobias (pessoas que têm medo de abrir os olhos, pessoas que sentem horror a estar perto de carecas, pessoas que detestam receber boas notícias, ou pessoas incapazes de olhar e de tocar em joelhos, seja os próprios, seja os dos outros).
O ser humano é um implacável classificador. Não pode dispensar as listas. Não passa sem elas. As listas são inerentes ao cérebro humano, traduzem o nosso impulso de, simultaneamente, unir e demarcar, aproximar e afastar, associar e dissociar.
São talvez aquilo que melhor nos distingue dos outros animais. Por exemplo, nenhuma pessoa de bom senso negará que somos o único ser vivo capaz de fazer uma lista de animais não humanos com diplomas académicos fraudulentos (entre outros, rato doméstico Colby Nolan recebeu um MBA da Trinity Southern University, porém, veio a saber-se mais tarde, por fontes fiáveis, que não só não possuía as qualificações necessárias, como nunca foi às aulas) ou uma lista dos animais que praticam a prostituição.
Estas listas existem mesmo, não são produto da minha imaginação (a minha capacidade de efabulação não chega a tanto), podem ser consultadas na Internet.
Na Wikipédia, por exemplo, encontramos uma imensidade de tipos perfeitos de listas, que põem à prova a nossa capacidade para manter a mente aberta a novas listas. Se não as tivesse visto não teria acreditado: listas de pessoas que morreram na casa de banho ou com um coco na cabeça (uma lista preocupantemente longa); lista de inventores mortos pelas suas próprias invenções; lista de processos judiciais contra Deus (quase todos indeferidos porque Deus, não tendo um endereço, não pôde ser devidamente notificado); lista das piores declarações de Bolsonaro; lista com todos os títulos do líder norte-coreano Kim Jong-Il ("Pessoa Superior", "Querido Líder que é a Encarnação Perfeita do Aspecto que um Líder Deve Ter", "Filho do Futuro Comunista", "Sol Radioso do Século XXI", "General Invencível e Triunfante", "Grande Homem que é um Homem de Grandes Acções", "Altíssima Encarnação da Camaradagem Revolucionária", etcétera, etcétera); lista de pessoas influentes que nunca viveram; lista de associações modernas que acreditam que a Terra é plana; lista de cidades-fantasma do Canadá; ou, até, a fundamentalíssima lista das 24 páginas mais estranhas da própria Wikipédia.
Aliás, a Wikipédia gosta tanto de listas que possui, inclusivamente, uma lista de listas de listas, em que uma lista leva a outras listas que por sua vez nos reenviam para outras listas, chegando-se a um momento em que as coisas mais diversas e opostas, as mais estranhas, as mais afastadas, encontram o seu ponto comum e entram em contacto: a lista de objectos artificiais enviados para o Espaço pode conduzir-nos a uma lista de planetas do filme Star Trek; a lista dos objectos mais comuns abandonados em cacifos até à lista das playlists mais mexicanas do Spotify; a lista de jogadores de cricket do Sri Lanka à lista das coisas mais bizarras que aconteceram (até agora) em 2021; a lista das melhores e das piores cores para usar no trabalho à lista de operações militares na Guerra do Vietname; a lista dos piores filmes de terror (Palhaços Assassinos do Espaço Sideral, O Vingador Tóxico ou Piranha 3D) à lista dos nomes mais estranhos de pessoas (como Aeronauta Barata, Agrícola Beterraba Areia, Ácido Acético Etílico da Silva, Amim Amou Amado, António Moura Pacífico de Oliveira Sossegado ou Espere Em Deus Matheus) ou à lista das piores figuras que os convidados fazem nos casamentos.
Na verdade, as listas personificam o paradoxo próprio da pós-modernidade, onde tudo é uma síntese de tendências opostas, onde nada é coerente e inteligível isoladamente, implica sempre uma qualquer relação com o seu avesso. Mostram que o desenvolvimento histórico resulta de uma tensão entre princípios antagónicos – afastar e correlacionar, discriminar e igualizar, incluir e excluir – que, combinados, nos oferecem uma imagem do mundo fotografado a contra-luz.
Vejamos apenas um exemplo, para não abusar mais da paciência do leitor: a lista das pessoas mais afortunadas do mundo só adquire o seu sentido exacto quando confrontada com a lista das piores profissões do planeta: provador de alimentos para animais, desentupidor de esgotos, farejador de odores (trabalhadores de empresas de desodorizantes que ganham a vida a cheirar as axilas, a respiração e os pés das pessoas), juiz de gases intestinais (no Brasil, pelo menos, é uma profissão), cobaia de pistolas de choque e testador de supositórios.
Era aqui – ao supositório – que queria chegar com tudo isto. Porque o supositório, entre todos os produtos farmacêuticos, é de longe o que tem o pior trabalho. Talvez por ser um assunto doloroso de abordar, por causar incómodo e desconforto, o supositório tem sido lançado ao esquecimento, pouca ou nenhuma atenção se lhe tem prestado. Como estava ainda por escrever uma crónica sobre o supositório, na próxima semana vou tentar uma coisa que nunca ninguém tentou: aprofundar os mistérios da existência do supositório.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
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