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Marta Fonseca Ferreira Advogada
03.03.2025

O Tradutor e a Testemunha

Tiago manteve-se profissional, mas sentiu algo quebrar-se dentro de si. Teria sido enganado por aqueles olhos azuis-acinzentados?

No Tribunal Judicial de Braga, com a sua fachada de linhas suaves e janelas amplas que deixavam entrar a luminosidade outonal, o Dr. Tiago Ferreira ajustava os auscultadores na cabine de tradução simultânea. A sala de audiências número três estava particularmente cheia naquela manhã, atraindo jornalistas e curiosos para o que os media já chamavam "O Caso Europol" — um complexo processo de tráfico de pessoas que atravessava fronteiras desde a Ucrânia até Portugal. 

Tiago, com trinta e poucos anos, tinha-se especializado em tradução jurídica de ucraniano e russo durante o seu doutoramento em Linguística Forense, nunca imaginando que um dia a sua carreira o colocaria no centro de um dos casos mais mediáticos dos últimos anos. Enquanto verificava os equipamentos, o seu olhar cruzou-se com o da mulher que acabava de ser escoltada para dentro: Lyudmila Kovalenko, a principal testemunha do Ministério Público. 

Havia algo naquela mulher que o intrigava desde a primeira sessão, há duas semanas. Talvez fosse a dignidade com que mantinha a postura, apesar das circunstâncias. Ou talvez fossem os seus olhos azuis-acinzentados, que pareciam carregar o peso de histórias que as palavras — mesmo perfeitamente traduzidas — nunca conseguiriam captar completamente. 

"Muito bom dia a todos," a voz grave da Meritíssima Juíza Doutora Conceição Sampaio ecoou pela sala. "Continuação da audiência de julgamento do processo 2024/1872.3T8BRG. Senhor Procurador, podemos prosseguir com a inquirição da testemunha." 

Dr. Ricardo Esteves, do Ministério Público, levantou-se e aproximou-se da testemunha. Tiago ajustou o volume e preparou-se para o seu trabalho, enquanto o procurador começava: 

"Senhora Kovalenko, na última sessão falávamos sobre o seu primeiro contacto com o arguido Dimitri Volkov. Pode relatar ao tribunal exatamente o que aconteceu quando chegou a Lisboa?" 

Tiago respirou fundo e começou a traduzir para ucraniano. Era um trabalho que exigia total concentração e neutralidade — qualidades que, ultimamente, ele tinha dificuldade em manter quando se tratava de Lyudmila. Quando ela respondeu, a sua voz tinha uma suavidade que contrastava com a dureza do conteúdo: 

"Fui recebida no aeroporto por um homem que disse ser assistente do Sr. Volkov. Levou-me para uma casa nos arredores de Lisboa, onde me tiraram o passaporte. Disseram que era temporário, apenas para tratar da documentação do trabalho prometido." 

Enquanto traduzia para português, Tiago notou como ela apertava as mãos no colo, o único sinal visível de nervosismo. Ele conhecia bem aquela história — mulheres atraídas com promessas de empregos legítimos em Portugal, apenas para descobrirem que tinham caído numa rede de exploração. 

A audiência prolongou-se por toda a manhã, com Lyudmila a descrever em detalhes meticulosos como tinha sido transferida para Braga, onde a rede tinha outra "casa" para mulheres ucranianas e moldavas. Foi ali que ela conseguiu escapar e contactar as autoridades, tornando-se a chave para desmantelar a rede. 

Durante a pausa para almoço, Tiago dirigiu-se à pequena cafetaria do tribunal. Estava a escolher uma sandes quando ouviu um ligeiro sotaque atrás de si: 

"O senhor é um excelente tradutor." 

Voltou-se para encontrar Lyudmila, acompanhada a uma distância discreta por um agente da Polícia Judiciária. Ela estava sob proteção policial 24 horas por dia, como testemunha protegida. 

"Obrigado," respondeu em ucraniano, surpreendendo-a. "Tento ser o mais fiel possível." 

"Fala muito bem," ela sorriu pela primeira vez. "Aprendeu onde?" 

"Trabalhei em Kiev durante três anos como tradutor na Embaixada portuguesa," explicou ele, mudando para português. "E o seu português também é surpreendentemente bom." 

"Estudei literatura portuguesa na universidade de Lviv," respondeu ela. "Ironia do destino, não? Vim para Portugal por amor à cultura, e encontrei... isto." 

O agente da PJ aproximou-se, indicando que o tempo de socialização tinha terminado. Antes de se afastar, Lyudmila disse algo que ficou com Tiago durante o resto do dia: 

"Às vezes, senhor tradutor, há coisas que não consigo dizer no tribunal. Coisas que não cabem nas palavras." 

Nas semanas seguintes, Tiago traduziu horas de depoimentos detalhados. Testemunhos sobre rotas de tráfico, contas bancárias, ameaças a familiares que tinham ficado na Ucrânia. Durante este tempo, encontrou Lyudmila ocasionalmente nos corredores do tribunal, sempre sob vigilância, mas suficiente para breves trocas que foram evoluindo de cortesias profissionais para conversas sobre literatura ucraniana, sobre a cidade de Braga, sobre pequenas coisas que pareciam construir uma ponte frágil sobre o abismo das circunstâncias que os tinham reunido. 

Foi na terceira semana que algo mudou. O advogado de defesa, Dr. Carlos Mendonça, conhecido pela sua agressividade em tribunal, começou a atacar a credibilidade de Lyudmila: 

"Senhora Kovalenko, é verdade que já conhecia o arguido Dimitri Volkov antes de vir para Portugal?" 

Tiago traduziu, observando como o rosto dela empalidecia. 

"Não, nunca o tinha visto antes," respondeu ela firmemente. 

O advogado sorriu, aquele sorriso que antecipa uma armadilha. "Então como explica estas fotografias?" 

Na tela da sala surgiu uma imagem de Lyudmila ao lado de Volkov numa festa em Kiev, três anos antes. Tiago sentiu o estômago contrair-se enquanto traduzia a pergunta seguinte: 

"Não seria verdade que a senhora era, na realidade, parte da organização? Que a sua suposta 'fuga' foi, na verdade, o resultado de um desentendimento entre parceiros de negócio?" 

A sala encheu-se de murmúrios. Tiago manteve-se profissional, mas sentiu algo quebrar-se dentro de si. Teria sido enganado por aqueles olhos azuis-acinzentados? A resposta dela foi serena: 

"Posso explicar essa fotografia, se o tribunal permitir. Era assistente de organização de eventos em Kiev. Essa festa foi organizada pela empresa onde eu trabalhava. Não conhecia pessoalmente esse homem, estava apenas a cumprir funções profissionais." 

Durante a pausa que se seguiu, Tiago encontrou-se com o Procurador numa das salas de consulta. 

"Precisamos de conversar," disse o Dr. Esteves. "A credibilidade da testemunha está em causa. Ela omitiu informações." 

"Talvez tivesse medo," respondeu Tiago, consciente de que estava a ultrapassar o seu papel de tradutor. 

"Ou talvez esteja a mentir sobre todo o resto," retorquiu o procurador. "Preciso que traduza algo para ela, extraoficialmente. Precisamos saber se há mais surpresas antes que a defesa as use contra nós." 

Naquela tarde, com autorização judicial e na presença do agente da PJ, Tiago encontrou-se com Lyudmila numa sala reservada do tribunal. 

"O procurador quer saber se há mais ligações suas ao arguido que possam surgir," explicou ele, desconfortável com o papel de interrogador. 

Lyudmila olhou para a janela por um longo momento antes de responder: 

"Volkov era cliente regular dos eventos que organizávamos. Ele... interessou-se por mim. Fez propostas. Rejeitei-as. Quando me ofereceram o trabalho em Portugal, não sabia que ele estava por trás. Apenas quando cheguei e o vi novamente... percebi que tinha caído numa armadilha." Ela hesitou. "Não mencionei antes porque temia que ninguém acreditasse em mim. Que pensassem que eu tinha vindo voluntariamente." 

"Por que haveria de mentir sobre ser uma vítima?" perguntou Tiago, esquecendo momentaneamente que estava ali como tradutor, não como interlocutor. 

"Porque às vezes a verdade soa como mentira," respondeu ela, olhando-o diretamente. "Está a gravar isto para o procurador?" 

"Não," admitiu ele. "Vou transmitir as suas palavras." 

"Todas as minhas palavras? Mesmo quando digo que desde que comecei a ouvir a sua voz nos auscultadores, traduzindo cada palavra minha com tanto cuidado, sinto que finalmente alguém neste país realmente me ouve?" 

Tiago sentiu o coração acelerar. "Lyudmila, eu não posso..." 

"Eu sei," ela interrompeu suavemente. "Sou uma testemunha protegida. Você é um oficial do tribunal. Há pelo menos dez razões pelas quais esta conversa não devia estar a acontecer. Mas acontece que, numa vida onde perdi controlo sobre tudo, as palavras são a única coisa que ainda são minhas. E queria que soubesse que as suas traduções... são a ponte para a minha verdade." 

Nos dias que se seguiram, Tiago enfrentou o maior desafio da sua carreira. O Ministério Público decidiu questionar Lyudmila sobre todas as suas interações com Volkov, expondo a situação antes que a defesa o fizesse. Durante horas, Tiago traduziu a história completa: como Volkov a tinha perseguido em Kiev, como tinha orquestrado a falsa oferta de trabalho para atraí-la, como a tinha ameaçado quando ela tentou resistir. 

Cada palavra traduzida era uma lâmina afiada que parecia cortar algo dentro dele. Manteve-se profissional, mas à noite, sozinho no seu apartamento, as palavras dela ecoavam na sua mente. 

A reviravolta veio quando a PJ encontrou um diário que Lyudmila tinha mantido escondido. Escrito em ucraniano, o diário documentava com detalhes precisos as ameaças e abusos. Tiago foi chamado para o traduzir oficialmente. Cada página confirmava o que ela havia dito, cada entrada validava a sua experiência. Aquele pequeno caderno, escrito nos momentos de solidão forçada, tornou-se a pedra angular do caso. 

No final do julgamento, quando Volkov e seus cúmplices foram condenados a penas que somavam décadas, Tiago esperava encontrar Lyudmila para uma última tradução. Mas foi informado que ela tinha sido transferida para outro local, como parte do programa de proteção à testemunha. 

"Ela deixou isto para si," disse-lhe o agente da PJ, entregando-lhe um envelope. 

Dentro, havia apenas um pequeno papel com uma citação da poetisa ucraniana Lesya Ukrainka, escrita em cirílico: "As palavras são as únicas armas que nos permitem lutar sem nos tornarmos naquilo que combatemos." 

Seis meses depois, Tiago recebeu um telefonema inesperado do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. 

"Dr. Ferreira? Temos uma situação com uma cidadã ucraniana cuja autorização de residência está a ser finalizada. Ela insistiu que você seria o tradutor ideal para a entrevista final." 

Quando entrou na sala asséptica do SEF, ela já estava lá, o cabelo mais curto, mas os mesmos olhos que pareciam conter histórias por traduzir. 

"Olá," disse ela em português. "Preciso da sua ajuda para uma última tradução oficial." 

"Que tradução?" perguntou ele, tentando manter a compostura. 

Ela sorriu. "A do meu futuro. Parece que vou ficar em Portugal, afinal. E preferia que fossem as suas palavras a contar a minha história daqui para a frente." 

E ali, sob as luzes fluorescentes de um gabinete burocrático do SEF, longe dos dramas do tribunal, duas pessoas que tinham sido unidas pelas palavras mais dolorosas encontraram finalmente espaço para traduzir os sentimentos que nenhum tribunal poderia julgar. 

No Tribunal de Braga, o "Caso Europol" foi arquivado e classificado, juntando-se às inúmeras histórias de justiça que aquelas paredes testemunharam. Mas a verdadeira história — a de um tradutor e uma testemunha que encontraram uma linguagem comum no meio do caos — essa continuaria a ser escrita, longe dos autos e das atas oficiais, numa narrativa que nenhum processo judicial poderia conter. 

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