A audiência adocicada
No Tribunal Judicial de Aveiro, decorria um processo que fazia sorrir até o mais sisudo oficial de justiça. O caso tinha-se tornado viral nas redes sociais de Aveiro, e metade da cidade parecia querer assistir ao desfecho.
No Tribunal Judicial de Aveiro, um edifício moderno que contrastava com a arquitetura tradicional dos moliceiros que deslizavam pelos canais da cidade, decorria um processo que fazia sorrir até o mais sisudo oficial de justiça.
O Dr. António Xavier, juiz conhecido pela sua imparcialidade e pelo seu discreto vício em pastéis de nata, presidia a uma sala repleta de público, um fenómeno raro para uma simples audiência de julgamento por alegados danos materiais. O caso tinha-se tornado viral nas redes sociais de Aveiro, e metade da cidade parecia querer assistir ao desfecho.
"Processo nº 217/2024, Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo Local Cível," anunciou o escrivão, ajustando os óculos de forma solene. "Autor: Pastelaria Doce Aveiro, representada pelo seu gerente, Sr. Manuel Pereira. Ré: Sr.ª Inês Cardoso."
A ré, uma jovem mulher de cerca de trinta anos, cabelo ruivo apanhado num rabo-de-cavalo descontraído e olhos verdes expressivos, sentou-se com uma postura tranquila que contrastava com a formalidade do ambiente. Vestia um fato azul-turquesa que parecia ter sido escolhido para combinar com o tom dos canais da ria.
Do outro lado, o Sr. Manuel Pereira, um homem corpulento com um bigode imponente que parecia ter sido herdado de gerações de pasteleiros, remexia-se inquieto na cadeira, lançando olhares entre o indignado e o embaraçado para a ré.
"Senhor Doutor Juiz," começou o advogado da pastelaria, o Dr. José Alves, "o meu constituinte move esta ação contra a Sr.ª Inês Cardoso por danos materiais e morais resultantes de um incidente ocorrido a 14 de fevereiro deste ano, nas instalações da Pastelaria Doce Aveiro."
O juiz assentiu, consultando os autos.
"Prossiga, Dr. José."
"Na data referida, Dia de São Valentim, a ré entrou na pastelaria e, num ato premeditado e deliberado, arruinou uma encomenda especial de 100 pastéis de nata que estavam destinados a um evento de noivado. Os danos materiais ascendem a 350 euros, valor da encomenda perdida, acrescidos de 500 euros por lucros cessantes e danos reputacionais."
Um murmúrio percorreu a sala. O juiz fez sinal para que continuasse.
"Além disso," prosseguiu o advogado, "a ré causou grande perturbação ao pessoal e clientes presentes, tendo sido necessária a intervenção da PSP para acalmar os ânimos."
O juiz olhou para a ré, que mantinha uma expressão serena, quase divertida.
"Sr.ª Inês Cardoso, como se declara perante estas acusações?"
Inês levantou-se com uma calma estudada.
"Culpada quanto à interferência nos pastéis de nata, Meritíssimo, mas com motivações atenuantes que espero explicar."
O juiz ergueu uma sobrancelha, intrigado.
"Estou ansioso por ouvir essas explicações, Sr.ª Inês."
Ela sorriu, ajustando ligeiramente o blazer.
"Meritíssimo, sou química de profissão, especializada em ciência alimentar no Instituto Tecnológico de Aveiro. Há cerca de um ano, conheci o Sr. Luís Teixeira, chef pasteleiro e filho do autor deste processo, num workshop sobre fermentação que dei na universidade."
Olhou brevemente para o pasteleiro, que desviou o olhar.
"Luís e eu desenvolvemos uma relação pessoal e profissional. Como químico-chefe de pesquisa da minha empresa, trabalho no desenvolvimento de novos ingredientes naturais. Luís, como pasteleiro inovador, testava estes ingredientes nas suas criações."
"E isto relaciona-se com os pastéis de nata destruídos... como, exatamente?" perguntou o juiz, cada vez mais curioso.
"Durante seis meses, Meritíssimo, desenvolvemos em conjunto uma nova receita de pastel de nata, incorporando extrato de baunilha das Ilhas Comores que importei especificamente para o projeto, e uma técnica inovadora de caramelização que Luís aperfeiçoou. O objetivo era criar um pastel de nata verdadeiramente diferenciador, que pudesse colocar a Doce Aveiro no mapa gastronómico nacional."
Inês fez uma pausa, inspirando profundamente.
"A nossa relação evoluiu para algo mais pessoal. Passámos inúmeras noites na cozinha experimental da pastelaria, depois do horário de fecho, a testar variações da receita. Tornámo-nos... íntimos."
O Sr. Manuel resmungou algo inaudível, mas o juiz silenciou-o com um gesto.
"Em janeiro, finalmente perfeiçoámos a receita. Era extraordinária, se me permite a imodéstia, Meritíssimo. Combinámos apresentá-la oficialmente no Dia de São Valentim, com uma degustação especial para críticos gastronómicos e bloggers locais. Seria o nosso presente para Aveiro e... de certa forma, a celebração do nosso amor pela pastelaria e um pelo outro."
"E então, o que aconteceu a 14 de fevereiro?" perguntou o juiz, completamente absorvido pela história.
"No dia 13, descobri que Luís tinha inscrito a receita no concurso nacional de pastelaria inovadora, apresentando-a como criação exclusivamente sua, sem qualquer menção ao meu contributo científico. Descobri também que tinha marcado a tal degustação especial com os críticos como um evento de noivado - mas não comigo."
Um murmúrio de indignação percorreu a sala. O juiz bateu levemente com os dedos na secretária para manter a ordem.
"Ao investigar melhor, descobri que a noiva em questão era a filha do dono da maior cadeia de pastelarias do distrito. Um casamento arranjado para expandir o negócio familiar, aparentemente."
Inês olhou diretamente para o Sr. Manuel, que parecia cada vez mais desconfortável.
"No dia 14, dirigi-me à pastelaria para confrontar Luís. Quando cheguei, encontrei os 100 pastéis de nata da nossa receita especial, perfeitamente alinhados em tabuleiros. Estavam prontos para a tal apresentação, cada um com a assinatura visual que tínhamos desenvolvido juntos - uma pequena espiral de canela no topo que simbolizava, segundo Luís me tinha dito, 'o nosso amor em forma de doce'. Os cartões de apresentação no balcão exibiam o nome de Luís Pereira como único criador da 'revolucionária receita de pastel de nata'."
Inês fez uma pausa, visivelmente emocionada apesar da sua tentativa de manter a compostura.
"Confrontei Luís na cozinha. Ele admitiu tudo, Meritíssimo. Disse-me que o negócio era mais importante que os sentimentos, que o pai dele tinha insistido neste casamento para salvar a pastelaria de problemas financeiros que eu desconhecia, e que a minha contribuição científica seria 'compensada mais tarde'. Ofereceu-me até uma percentagem dos lucros futuros, como se o meu coração pudesse ser comprado com uma comissão."
O Sr. Manuel remexeu-se, incomodado, tentando intervir, mas o juiz manteve-o em silêncio com um gesto firme.
"E então, o que fez exatamente, Sr.ª Inês?" inquiriu o juiz.
"Não toquei em Luís, se é o que está a pensar, Meritíssimo. Sou cientista, não agressora," respondeu ela com um leve sorriso. "Em vez disso, dirigi-me calmamente aos tabuleiros de pastéis de nata e... bem, apliquei ciência."
"Ciência?" O juiz não conseguiu esconder o seu espanto.
"Sim, Meritíssimo. Tinha comigo um pequeno frasco com um extrato natural de hibisco que estava a desenvolver no laboratório. Totalmente inofensivo para consumo humano, certificado até para uso alimentar, mas com uma propriedade muito específica: em contacto com a canela, cria uma reação que altera drasticamente o sabor."
"E a senhora aplicou este... extrato nos pastéis de nata?"
"Apenas um micro pinga em cada um, Meritíssimo. Cientificamente calculada para não alterar a aparência, mas para transformar o sabor de 'revolucionário' em 'revoltante'. Algo entre peixe podre e meias usadas, segundo as descrições dos presentes. Curiosamente, a alteração apenas se manifestava após alguns segundos na boca, permitindo que a pessoa apreciasse primeiro a beleza visual e a textura perfeita."
Um riso abafado percorreu a sala, rapidamente contido pela formalidade do ambiente.
"Quando os convidados chegaram, incluindo a noiva e o seu pai, foram recebidos com os pastéis de nata aparentemente perfeitos. Luís, ignorando o que eu tinha feito, serviu-os com orgulho. O resultado, como pode imaginar, foi... memorável."
"A senhora arruinou deliberadamente um produto alimentar destinado a consumo?" A voz do juiz tentava manter a seriedade, mas havia um tremor de divertimento nela.
"Arruinei o sabor, Meritíssimo, não a segurança. Como disse, o extrato é certificado para consumo, apenas desagradável em combinação com a canela. Ninguém correu risco de saúde - apenas de humilhação pública."
O advogado da pastelaria levantou-se abruptamente.
"Meritíssimo, isto é uma confissão clara! A ré admite ter sabotado deliberadamente um produto comercial, causando danos reputacionais e materiais ao meu cliente!"
O juiz assentiu.
"De facto, Dr. José. Sr.ª Inês, compreende a gravidade do que fez?"
"Compreendo, Meritíssimo. Compreendo que interferi com propriedade alheia, independentemente das circunstâncias emocionais. Estou preparada para assumir a responsabilidade pelos meus atos e compensar a pastelaria pelo valor dos pastéis de nata."
O juiz olhou para a sala, onde dezenas de pessoas assistiam com atenção quase cinematográfica.
"Há mais alguma parte que queira acrescentar alguma coisa antes de eu tomar uma decisão?"
Para surpresa geral, uma voz vinda do fundo da sala fez-se ouvir.
"Eu gostaria de falar, Meritíssimo, se me for permitido."
Um jovem alto, de avental branco sob um blazer apressadamente vestido, avançou pelo corredor central. Luís Pereira, o pasteleiro no centro da história, tinha finalmente aparecido.
"E o senhor é...?" perguntou o juiz, embora fosse óbvio para todos.
"Luís Pereira, Meritíssimo. Filho do autor e... o verdadeiro culpado desta situação."
O Sr. Manuel levantou-se, vermelho de indignação.
"Luís! O que estás a fazer? Volta para a pastelaria imediatamente!"
"Não, pai," respondeu Luís com uma firmeza surpreendente. "Já causei danos suficientes por me calar."
O juiz permitiu que se aproximasse.
"Meritíssimo, tudo o que a Inês disse é verdade. A receita foi desenvolvida em conjunto, com o conhecimento científico dela a ser fundamental para o resultado. Registei-a em meu nome por pressão do meu pai, que estava a negociar um contrato de exclusividade com a família da Márcia, a minha... bem, a minha ex-noiva agora."
Luís olhou para Inês com uma expressão de arrependimento profundo.
"Depois do 'incidente' dos pastéis de nata, a Márcia rompeu o noivado publicamente. O pai dela retirou a proposta de parceria. E eu... percebi o erro terrível que tinha cometido ao trair a confiança da única pessoa que realmente se importava com a pastelaria como arte, não apenas como negócio."
O Sr. Manuel tentou intervir novamente, mas o juiz foi firme.
"Silêncio, por favor. Continue, Sr. Luís."
"Para sermos completamente honestos, Meritíssimo, a situação financeira da pastelaria já era complicada antes deste incidente. O meu pai recusava-se a inovar, insistindo nas mesmas receitas de há 30 anos. Foi por isso que me interessei tanto pelo trabalho da Inês - ela representava a possibilidade de evolução sem perder a tradição."
Luís tirou um envelope do bolso do blazer.
"Trago aqui um documento, assinado por mim, reconhecendo a co-autoria da Inês na receita. Também trago a anulação formal do registo que fiz em meu nome e uma proposta de parceria equitativa para o futuro."
O juiz aceitou os documentos, examinando-os brevemente.
"Isto altera significativamente o panorama do caso," comentou. "Sr. Manuel, mantém a acusação contra a Sr.ª Inês, face a estas novas informações?"
O pasteleiro, visivelmente desconfortável, olhou para o filho e depois para Inês.
"Eu... bem, Meritíssimo, se o meu filho diz que ela contribuiu para a receita, então suponho que... mas os pastéis foram arruinados de qualquer forma!"
"Na verdade, pai," interrompeu Luís, "o efeito do extrato que a Inês aplicou dissipou-se completamente após algumas horas. Os pastéis de nata estavam perfeitamente comestíveis no dia seguinte, como pude comprovar pessoalmente."
"E os danos reputacionais?" insistiu o advogado da pastelaria.
"Quanto a isso," continuou Luís, "devo informar que após o incidente, e especialmente depois que a história se espalhou pelas redes sociais, a nossa pastelaria nunca teve tanta clientela. Viralizou como 'o drama mais doce de Aveiro'. As pessoas começaram a vir de propósito para experimentar os 'pastéis do escândalo', como os apelidaram. Estamos a vender o triplo do normal."
O juiz não conseguiu conter um sorriso perante esta reviravolta inesperada.
"Parece que os danos reputacionais transformaram-se em benefícios comerciais, Sr. Manuel."
Após alguns momentos de reflexão, o juiz tomou a sua decisão.
"Considerando todos os factos apresentados, e o reconhecimento verbal e escrito da contribuição científica da Sr.ª Inês para a receita em questão, considero o seguinte: a Sr.ª Inês deverá pagar o valor facial dos ingredientes utilizados nos pastéis de nata afetados, calculado em 75 euros, segundo os autos."
Fez uma pausa, ajustando os óculos.
"Quanto aos danos reputacionais e lucros cessantes, o pedido é indeferido, uma vez que ficou demonstrado que, pelo contrário, o incidente resultou em aumento de clientela e notoriedade positiva para o estabelecimento."
O Sr. Manuel parecia prestes a protestar, mas um olhar do filho fê-lo reconsiderar.
"Finalmente," concluiu o juiz, "recomendo fortemente que as partes formalizem a parceria proposta pelo Sr. Luís, que me parece a solução mais justa e produtiva para todos os envolvidos. Está encerrada a sessão."
Enquanto a sala se esvaziava, entre comentários animados sobre o desfecho inesperado, Luís aproximou-se de Inês.
"Desculpa," disse ele simplesmente. "Fui um idiota."
"Sim, foste," concordou ela, mas com um sorriso relutante. "Um idiota com talento para a pastelaria, devo admitir."
"E tu és uma cientista brilhante, com um dom especial para a vingança gastronómica," retribuiu ele. "Achas que ainda podemos fazer funcionar aquela receita? Como parceiros de verdade desta vez?"
Inês considerou por um momento, olhando para os documentos que Luís tinha apresentado.
"Parceiros de negócio, para começar," respondeu ela finalmente. "O resto... vai depender de muitos pastéis de nata e muitas provas de confiança."
Um ano depois, a Pastelaria Doce Aveiro ganhava o prémio nacional de pastelaria inovadora com o seu "Pastel de Nata Hibisco" – uma variação que, ironicamente, incorporava uma pitada do mesmo extrato que Inês tinha usado na sua vingança, mas desta vez cuidadosamente calibrado para realçar o sabor em vez de o arruinar. E nas embalagens, dois nomes partilhavam o crédito pela criação: um pasteleiro tradicional e uma química inovadora que tinham descoberto que, tal como na melhor pastelaria, no amor os ingredientes certos podem transformar até os momentos mais amargos em algo extraordinariamente doce.
A Chave Esquecida
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
O Relógio de Parede
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
A cadeira do juiz
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
A máquina de lavar
Na prática, discutia-se uma máquina de lavar roupa. A filha, Leonor, seis anos, vivia com a mãe, via o pai de quinze em quinze dias e às quartas-feiras à tarde. O pai pedia alteração ao regime para incluir uma noite adicional por semana. A mãe aceitava a alteração, com uma condição: que a roupa voltasse lavada.
A estante
A estante continuava no apartamento que partilharam durante anos. Ela saíra há oito meses, depois de uma separação silenciosa, feita de rotinas que deixaram de se sincronizar. Ele ficara. Nenhum dos dois mencionara a estante nos dias da divisão prática. Nem na devolução das chaves. Nem na última mensagem trocada.
Edições do Dia
Boas leituras!