O sarcoma Sarkozy
A última condenação do ex-Presidente francês recorda-nos como nasceu a crise da democracia.
A sentença que o condenou por “associação de malfeitores” não foi uma humilhação para ele. “O que humilharam hoje foi a França”, proclamou. A prova feita em julgamento não passa afinal de uma perseguição pessoal por uma cabala de magistrados e políticos empenhados em destruir um inimigo (mesmo que já na reforma). Quem ouviu Nicolas Sarkozy, há dias, à saída do tribunal que o condenou, prometendo dormir na prisão de cabeça erguida (coisa incómoda, certamente), reconheceu Sócrates, seu contemporâneo no poder. A mesma inteira incapacidade para a humildade, a mesma soberba, a mesma vitimização, o mesmo narcisismo.
Esta nem sequer é a primeira condenação do ex-Presidente de França, mas reconheça-se que a decisão conhecida a semana passada, que lhe ditou cinco anos de cadeia a ser cumpridos de imediato, mesmo enquanto espera pela decisão do recurso, pode facilmente gerar perplexidades. Sarkozy ia acusado de um plano criminoso para fazer entrar dinheiro sujo do regime líbio na sua primeira campanha presidencial, em 2007 – que viria a vencer. No entanto, o tribunal não considerou provado que o dinheiro líbio tivesse mesmo entrado na campanha, deixando cair as acusações relacionadas com o financiamento ilegal e a corrupção.
À superfície, o argumento compungido de Sarkozy faz sentido: se não encontraram dinheiro sujo nem enriquecimento pessoal, condenam-no porquê? Por ódio, diz ele, ódio sem limites. Plausível, não? Faz lembrar Sócrates e o sofrido “erro de escrita” onde ele pendura toda a má-fé do mundo contra um homem superlativo, alvo da inveja dos mortais. Na verdade, a justiça francesa deu por demonstrado que o dinheiro saiu da Líbia; só não se provou que tivesse efetivamente chegado à campanha presidencial. Havia indícios de que teriam circulado 35 mil euros em espécie na campanha, mas falhou a ligação documentada à Líbia. Provado ficou, sim, que Sarkozy fez parte de um plano criminoso para angariar a massa – e angariá-la junto de um regime ditatorial e sanguinário, vendendo a soberania do Estado francês como moeda de troca de um esquema de tomada do poder sem qualquer escrúpulo.
O tribunal decidiu que, independentemente de esse plano ter ou não sido concretizado, a associação criminosa que tentou levá-lo a cabo constitui, por si só, um crime grave que não pode passar impune. Se a prova é essa, os juízes têm toda a razão. Negociar a Presidência de França com Mouhammar Khadafi é um ataque direto à democracia, à soberania popular e ao Estado de Direito.
É evidente que um político preso vai sempre proclamar-se um preso político. E é inevitável que haverá sempre quem acredite. Aqui em Portugal, com Sócrates, é o mesmo: ainda que reduzida, continua a existir uma claque genuinamente convencida (ou patrocinada para isso) de que o homem é uma vítima do “sistema”. Sempre que um juiz condena um político ou ex-político poderoso, cria-se uma tensão que facilmente mobiliza gente pronta a agir para corrigir as deficiências do tal “sistema” persecutório, limitando o poder dos tribunais, chamando à política o poder de nomear e avaliar os juízes, ou perseguindo magistrados desalinhados.
Os Estados Unidos resolveram de forma expedita esta tensão entre política e justiça: decretaram a impunidade da Presidência e puseram na gaveta os crimes de Donald Trump – os já provados e os que ainda faziam o seu caminho nos tribunais. No Brasil, foram pelo caminho inverso, condenando Jair Bolsonaro a 27 anos de prisão pela conspiração criminosa que resultou na invasão do Congresso pelos apoiantes do ex-Presidente, em 2023.
Sim, na política (em qualquer lugar do mundo) não há salafrário que não tenha admiradores, e admiradores prontos a tudo. Mas a promessa elementar da democracia, derrubadas que foram as monarquias absolutas que nos governaram durante séculos, é que a lei é igual para todos, e com grande poder tem de vir grande responsabilidade. Aceitar que a justiça se demita de tocar nos poderosos é abdicar do Estado de Direito e legitimar a captura dos países pela vontade cúpida de quem manda em cada momento. É transformar cada Franca numa Líbia.
O caso de Sarkozy – como, por cá, o caso de Sócrates – é uma lição e um aviso: no momento em que Portugal, a Europa e o mundo torcem as mãos com o avanço dos populismos e a derrocada das democracias, estas histórias antigas tornadas casos judiciais recentes recordam-nos que não começou hoje a lenta erosão da liberdade. A lógica de poder pessoal que se sobrepõe às instituições do Estado é tão antiga como a civilização. O que nos tem defendido, até agora, são tribunais, procuradores e juízes capazes de suportar as pressões e aplicar a lei, mesmo que tarde e a más horas. Parece pouco, e é menos do que gostaríamos. Mas se acabarmos com esse pouco – uma justiça independente, atuante e cega ao estatuto dos poderosos – provaremos as consequências às nossas duras custas.
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