Na música, há vozes cujo eco nunca se despede verdadeiramente; fica connosco como uma lembrança que percorre toda a largura do corpo e guardamo-las num lugar que não sabíamos sequer existir. Na música, o luto tem a particularidade de nos aproximar de quem nunca tocámos, de quem podemos nunca ter visto, mas que conhecemos afinal como as mãos. Alguém como D'Angelo.
Seria fácil descrever a voz de D'Angelo como mais uma de eco, não fosse a obra do norte-americano uma cartada rara numa indústria que sofria a ressaca do grunge e que olhava para o rap e para o nu-metal como a solução para a fome. Íntima, quente e quase confessional, sempre amparada pela suavidade dos
back vocals e por uma linha de baixo impecavelmente esculpida, a estética sonora de Michael Eugene Archer foi uma fórmula sem molde, uma receita rara de mergulho bem-sucedido no passado para trazer de novo a soul às bocas da música.
Brown Sugar (1995), o primeiro disco, lançado quando tinha 21 anos, foi fulcral, mas a história começa muito antes.
No jardim de infância, ganhou o concurso de talentos de forma tão convincente que ficou proibido de voltar a participar. Aos sete anos, ensinou Luther, o irmão mais velho, então no nono ano, a tocar
Do Me, Baby, de Prince. E há ainda o episódio em que Luther e o seu irmão do meio, Rodney, o levaram ao centro comercial local, pararam numa loja de instrumentos e o deixaram sentar-se ao teclado. Em poucos minutos, tinha uma multidão à porta. As memórias, escritas numa peça publicada na revista
Rolling Stone em 2001, apontam sempre na mesma direção.
"A minha mãe tinha uma pequena divisão reservada lá em casa para ele, onde [D'Angelo] guardava o material todo e onde passava horas todos os dias", diz Luther, co-autor das faixas
Africa,
The Root e
Send It On. "Não havia um dia, em 16 ou 17 anos que ele não tocasse a sua música", relatava também.
Nascido no estado da Virgínia, em 1974, filho de um pastor Baptista, D'Angelo cresceu entre coros e púlpitos e aprendeu a tocar piano ainda antes de entender o peso exato do seu talento. "Isto [a música] é a única coisa que me vejo a fazer", disse, nessa mesma entrevista, depois de um espetáculo em Los Angeles com os Soultronics.
"Tocava em todos os sítios que podia", comentou, sobre a sua infância, o músico, calorosamente tratado apenas como D pela família. A igreja do pai foi escola e casa mas, quando foi viver com a mãe, e soaram os primeiros acordes na igreja do avô, em Powhatan, no interior da Virgínia, a sensação prolongou-se para lá da ideia de querer ser. Tornou-se real.
Seguiu-se a formação de um grupo com dois primos, os Three of a Kind, e as demonstrações de talento puro em concursos de talentos locais. Data após data, tocavam versões de canções que ouviam na rádio e arrecadavam prémios. Ou "ficavam sempre em posições altas", relembra Luther. Tentou seguir os passos dos irmãos e experimentou o futebol americano mas ninguém da família ia aos jogos porque "sabiam que para mim só dava a música".
Em meados dos anos 1990, o talento de D’Angelo já se tornara impossível de conter nas igrejas ou nos concursos. O que começou como curiosidade espiritual - a descoberta de que tocar podia ser uma forma de oração - depressa se transformou em vocação.
Brown Sugar, tema lançado em 1995, foi o seu evangelho secular. As rádios começaram a rodar
Lady e
Cruisin’, mas o que o distinguia não era a melodia, era o pulso; um som húmido, um certo fumo na voz, uma hesitação intencional entre a doçura e o perigo. D’Angelo trouxe de volta a alma — mas uma alma com corpo, suada, carnal.
A crítica chamou-lhe “o novo Marvin Gaye”, mas ele fugia das comparações com a mesma timidez com que fugiria, anos mais tarde, da fama. A cada entrevista, parecia pesar-lhe a ideia de ser ícone. “Não queria ser o novo nada”, dizia. “Só queria fazer música que fosse verdade.”
Essa verdade atingiu o seu ponto mais alto com
Voodoo (2000), um álbum que mudou a gramática da soul e definiu o chamado neo-soul, ainda que D’Angelo nunca tenha gostado da etiqueta. O disco nasceu no Electric Lady, o estúdio construído pelo lendário guitarrista Jimi Hendrix, e foi fruto de uma longa residência espiritual. Ao lado dos músicos Questlove, Erykah Badu, Common e J Dilla — os Soulquarians —, D’Angelo procurava o som imperfeito, a batida que falha, o compasso que respira. O resultado foi uma tapeçaria densa de ritmos arrastados e harmonias em combustão lenta.
"Era a guerra pelo futuro da música”, descreveu Questlove, baterista do coletivo The Roots. E talvez fosse. No meio de um mercado obcecado com a perfeição digital, no pico da obsolescência do analógico, D’Angelo e os seus cúmplices devolveram ao erro o estatuto de beleza. “Queríamos que [a música] soasse como se estivesse viva”, definia Questlove. E, novamente, talvez estivesse. Cada faixa do álbum -
The Root,
Devil’s Pie,
Africa - parecia pulsar por conta própria, com uma alma que se expandia a cada rodada.
Mas o corpo, esse, começou a ceder. O vídeo de
Untitled (How Does It Feel) — um plano fixo sobre o tronco nu de D’Angelo, banhado por luz - fê-lo prisioneiro da sua própria imagem. De profeta da soul, passou a símbolo sexual. O público começava a sobrepor o desejo à música. A pressão, as digressões, o ruído da fama e a exigência de um novo álbum acabaram por silenciá-lo. Recolheu-se. Entrou em conflito com a indústria, com o corpo, com a fé.
Durante mais de uma década, desapareceu. A indústria moveu-se sem ele, mas a sua sombra permaneceu. Entre estúdios abandonados, reabilitações e rumores de novos discos, havia sempre a mesma pergunta suspensa: onde está D? A resposta só viria em 2014, quando
Black Messiah, o seu terceiro disco, emergiu sem aviso.
Álbum político, elétrico, insurgente. D’Angelo reaparecia mais denso, mais ferido, mas também mais urgente. “
We’re living in a state of fear,” cantava em
The Charade. O lamento transformara-se em manifesto. O corpo, antes erotizado, tornara-se veículo de revolta. A mesma voz que um dia seduzira multidões, gritava agora por justiça.
Black Messiah foi mais do que um disco, para ele e para quem o ouviu, foi um regresso à essência da música negra — espiritual, comunitária, combativa.
Três álbuns apenas -
Brown Sugar,
Voodoo e
Black Messiah - bastaram para o inscrever entre os grandes. Sem D’Angelo, talvez não existisse o experimentalismo de Frank Ocean, a vulnerabilidade de Daniel Caeser ou a mística de Solange. Foi Archer quem nos mostrou que a alma podia ser política sem perder o corpo, que a fé podia habitar a carne e traduzir-se em canções.
Nos últimos anos, afastado dos palcos, deixou o mito crescer em silêncio. Dizia-se que estava a gravar, que voltaria, que tinha mais canções. Talvez tivesse, mas algumas presenças tornam-se eternas precisamente porque não regressam.
Esta semana, quando
a notícia da morte se espalhou, a respiração acelerou. Nas redes sociais, as mensagens procuraram traduzi-lo, e à música que fez, o melhor possível. “Ele era o som da alma negra do nosso tempo. Ninguém tocava como ele. Ninguém respirava assim", escreveu o amigo Questlove.
Jill Scott chamou-lhe “um milagre que respirava notas”, Erykah Badu partilhou apenas uma fotografia a preto e branco, sem legenda e o ator e músico Jamie Foxx escreveu "lembro-me de ouvir a tua música pela primeira vez... disse para mim mesmo 'caramba, quem quer que seja, está ungido... Quando tive finalmente a hipótese de te ver... Tal como todos os que viram o videoclipe mais incrível do nosso tempo... Fiquei estupefacto [...] A tua voz era sedosa e impecável, fiquei graciosamente com inveja de ti e do teu estilo".
De Flea, mítico baixista dos Red Hot Chili Peppers a Beyoncé, do músico Tyler, The Creator a Nile Rodgers, de Bootsy Collins a H.E.R., as reações multiplicaram-se. Como a do produtor 9th Wonder, que o descreveu como "o melhor músico soul da sua geração". A marca de D'Angelo é de profundidade e de génio. Unamo-nos, então, na ausência, ao som de
Send It On, no groove lento que, como o próprio D'Angelo, soube condensar a fé, o desejo, a culpa e a redenção dentro.