Estamos nos anos 2000, em Porto Alegre, Brasil. Joaquim tem 24 anos, não tem mãe, não sabe do pai e cuida de uma avó com demência. Como homem negro, tem na entrada na universidade um desafio acrescido: trinta e duas perguntas que tentam confirmar se é, de facto, uma pessoa negra.
De Onde Eles Vêm, de Jeferson Tenório, acabado de chegar às livrarias, é um romance sobre as dores de crescimento escrito com a leveza só possível àqueles que sabem que têm de matar um leão por dia. O escritor Jeferson Tenório, de 48 anos, conta-nos assim, pela voz de Joaquim (num estilo despojado e praticamente auto-ficção), como foram os primeiros anos de quotas raciais nas universidades brasileiras - aquilo a que, numa entrevista à TV Cultura, chamou de "revolução silenciosa".
Conta-nos Joaquim: "Entrei pelo sistema de cotas raciais na universidade aos vinte e quatro anos, e tudo o que posso dizer é que quase fui vencido pela burocracia. (...) Ao chegar ao local onde eram feitas as matrículas, fui recebido por uma secretária que só sabia repetir todo um jargão burocrático. Ela conferia minha documentação como se tivesse o poder de decidir quem entra e quem não entra na universidade."
As dificuldades de Joaquim no mundo académico não são os livros, o estudo ou os exames. A maior dificuldade é aquilo que sabe que os outros pensam dele. Quando aceita boleia da mãe de uma colega que fuma maconha, a namorada lembra-o de que se tivessem sido parados pela polícia seria ele a ser interrogado como culpado. Quando fala em público e se sente a falhar, não é ter falhado que o entristece: "Me sentia culpado porque pensava que agora poderiam confirmar o que pensavam de mim."
Nos regressos a casa, nada o deixa esquecer-se do que o separa dos outros estudantes. "No ônubus suado, com cheiro de gente, apinhado de trabalhadores que rumavam para suas casas, entendi que aquele microcosmo caótico era o cenário que eu tinha. Há de haver alguma beleza nessa vida fodida de merda, pensei. Fechei os olhos. Eu era um idiota tateando no escuro em busca de beleza num ônibus fedido e lotado a caminho de Alvorada."
O esforço de Joaquim é real: "Desci duas paradas antes da minha. Precisava me recuperar. (...) Eu tinha de chegar inteiro em casa porque a minha avó precisava do melhor de mim."
Para a jornalista e escritora brasileira, Eliana Alves Cruz, cujo texto consta do livro, esta é "uma obra fundamental para entender o Brasil contemporâneo e, principalmente, para a compreensão do que é ser negro neste desenho de país em que as questões étnico-raciais eclodem como marcadores nas relações interpessoais e com o Estado. A Lei de Cotas, tão atacada por um debate público por vezes raso e permeado por todos os ranços de uma nação fundada em bases excludentes, ganha corpo e rosto na trama. Quem sabe a ficção, mais uma vez, venha em socorro do exercício de empatia tão difícil entre nós."
Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977, mas vive em Porto Alegre. Estreou-se como escritor com O Beijo na Parede (2013), eleito Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Seguiu-se Estela sem Deus (2018), que lhe garantiu o aplauso da crítica mas também dos leitores. O seu terceiro romance, O Avesso da Pele (2021), foi distinguido com o Prémio Jabuti para Melhor Romance, finalista dos prémios Oceanos e São Paulo de Literatura, e está a ser adaptado ao cinema.