Ainda que seja designada com uma medida de quantidade, a grande literatura não se mede aos palmos. A Clarice Lispector, por exemplo, basta-lhe um conto de três páginas para não se compadecer com a velha teoria de que os bons livros são aqueles que se aguentam de pé sozinhos, apoiados na largura da lombada. E mesmo se não bastasse, a bem da metáfora, até ela tem agora um desses volumes de mais de 500 páginas, numa altura em que se celebra um pouco por todo o mundo a primeira vez em que são publicados numa só edição Todos os Contos.
À responsabilidade de Benjamin Moser, estudioso da obra de Clarice Lispector e autor da sua biografia, a colectânea agora publicada é um evento literário com um total de 85 contos - a arte da autora por excelência - e inclui textos de vários livros de contos, outros publicados avulso em jornais e revistas e ainda alguns inéditos retirados do espólio.
O inédito não teve impacto apenas no universo da língua portuguesa - está na shortlist para o prémio de Melhor Livro Traduzido no Reino Unido (com Elena Ferrante e José Eduardo Agualusa, entre outros) e foi considerado pelo The New York Times como "prova de que a autora foi - a par de Jorge Luis Borges, Juan Rulfo e Machado de Assis - um dos verdadeiros talentos originais da América Latina". Mais uma prova do fenómeno de culto gerado por Clarice, referida com simpatia pelos seus leitores apenas pelo primeiro nome. E é essa relação afectuosa entre um público intelectual e a autora que os académicos têm tido mais dificuldade em entender, apesar do reconhecimento qualitativo e das muitas análises ao tom inovador e à experimentação da sua escrita - bem expressa no conto O Ovo e a Galinha, um dos mais famosos e o preferido de Clarice: "Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa. Está com fome."