Resistência aos antibióticos é dos "maiores problemas de saúde pública da atualidade"
Há uma pandemia silenciosa a instalar-se há várias décadas: a resistência microbiana pode ser mais perigosa do que a Covid. E como é tão difícil encontrar novos antibióticos, o melhor é mesmo prevenir as infeções e ficar atento à terra que pisa. Dois terços dos antibióticos provêm de fungos e batérias presentes nos solos.
Se a ameaça de uma nova pandemia, como a da Covid-19, é real e cada vez mais presente, há uma outra que se tem vindo a instalar nas últimas décadas e que poderá causar ainda mais estragos. A resistência aos antimicrobianos - tornando os medicamentos ineficazes e prolongando as infeções, aumentando o risco de propagação - poderá levar a mais de 39 milhões de mortes até 2050, segundo estimativas avançadas pela revista The Lancet.
A notícia recente da identificação de uma nova classe de antibióticos (a chamada lariocidina), por uma equipa de investigadores da Universidade McMaster, no Canadá, traz um novo fôlego contra esta luta, já que há mais de três décadas que tal não acontecia.
Ana Raquel Freitas, professora de bacteriologia e microbiologia no Instituto Universitário de Ciências da Saúde, da CESPU, tem-se dedicado a este tema e também faz parte de uma equipa ibérica que desenvolve um projeto - MicroMundo -, que procura consciencializar a comunidade escolar para o problema da resistência antimicrobiana. À SÁBADO fala da importância do uso racional de antibióticos e do desafio que é lutar contra a natureza e descobrir novas moléculas que nos ajudem nesta luta. Até porque as bactérias são muito rápidas a desenvolver resistência, diz.
A investigadora fala também de como este projeto com as escolas é importante e conta como num simples vaso de uma planta se pode encontrar uma variedade de bactérias. Sim, a resposta pode mesmo estar no solo.
Porque é que a resistência antimicrobiana deve ser encarada como uma pandemia silenciosa?
É uma problemática que está instalada há décadas sem um pico pandémico, como aconteceu por exemplo com a Covid-19. Não há um resultado visível imediato quando a tentamos combater, mas deve ser vista como um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) já o afirmou.
Se os números são alarmantes e as previsões também, porque é que este assunto não tem atenção mediática?
A velocidade a que os microrganismos se têm adaptado e evoluído pode ter um impacto gigante, revertendo décadas de progresso na medicina moderna. Sempre que tomamos um antibiótico após um tratamento dos dentes não nos passa pela cabeça que o mesmo pode não ter efeito. Sempre que precisamos de uma cirurgia – até simples, como uma fratura óssea, cesariana, tirar o apêndice, etc. –, nem desconfiamos que o antibiótico administrado preventivamente não vai ser eficaz. Entre outros inúmeros exemplos do nosso dia a dia. É algo que não nos impacta de forma visível.
De forma geral, para quase todas as pessoas que morrem diariamente por infeções resistentes aos antibióticos em hospitais, os familiares nem chegam a saber a verdadeira causa de morte, porque a pessoa até já era idosa, tinha já muitas comorbilidades associadas, estava imunodeprimida, etc.
Mas, quando se assiste a cada vez mais pessoas jovens atingidas, o assunto ganha uma "chamada de atenção". Recentemente, a OMS até lançou uma task force de sobreviventes que dá voz a quem teve experiência de complicações de infeções resistentes aos antibióticos.
O que pode ser feito para alterar as previsões?
O uso racional e adequado dos antibióticos quer no homem, quer nos animais é o ponto principal. Mas, antes disso, o mais importante é a prevenção. Se prevenirmos, não chegamos a ter infeção (que pode vir a ser resistente). Tão simples quanto isto. Há múltiplas formas de prevenção, mesmo no dia a dia: gestos simples como a higienização correta das mãos em todas as situações que o justifiquem, a vacinação, a etiqueta respiratória, o uso de preservativos para prevenir infeções sexualmente transmissíveis, entre outras. E, claro, melhorar as práticas de higiene e controlo de infeções em hospitais.
Porque é que desenvolvemos resistência aos antibióticos?
Não somos nós que desenvolvemos resistência aos antibióticos, mas sim as bactérias que nos colonizam (habitam) ou infectam. Primeiro, deve-se realçar que a resistência aos antibióticos é um fenómeno natural. O que acontece é que o uso excessivo e/ou inadequado de antibióticos na medicina e na produção animal tem acelerado exponencialmente a seleção de bactérias resistentes.
As bactérias desenvolvem resistência aos antibióticos por meio de mecanismos naturais que lhes permitem sobreviver mesmo quando expostas a esses medicamentos. Essa resistência pode surgir de duas formas: através de mutações espontâneas no seu material genético ou pela troca de genes com outras bactérias — um processo conhecido como transferência genética horizontal.
Com esses genes de resistência, as bactérias podem produzir enzimas que destroem os antibióticos, modificar os seus alvos internos para que os medicamentos deixem de ser eficazes, ou ainda criar mecanismos que impedem a entrada ou facilitam a expulsão dos antibióticos da célula. Daí a necessidade crescente de novos antibióticos, já que, no fundo, as bactérias lutam pela sua sobrevivência e temos assistido a uma batalha constante entre o homem e estes microrganismos invisíveis a olho nu – mas tão poderosos.
Porque é tão difícil encontrar novas classes de antibióticos?
O principal desafio está na própria natureza das bactérias: ao longo de milhões de anos, elas evoluíram para resistir a compostos naturais com atividade antimicrobiana. Isso significa que muitos dos alvos possíveis para um antibiótico já foram explorados, e encontrar novas moléculas que sejam eficazes, seguras e seletivas é cada vez mais difícil.
Além disso, há um problema financeiro que torna a sua produção menos apetecível que outros medicamentos. Antibióticos costumam ser usados por curtos períodos e só quando necessário, ao contrário de medicamentos para doenças crónicas como a hipertensão, por exemplo. Isto torna o retorno do investimento menos atrativo para a indústria farmacêutica.
Outro fator agravante é a velocidade com que as bactérias desenvolvem resistência. Mesmo quando uma nova substância é descoberta, há o risco de em poucos anos se tornar ineficaz devido à adaptação das bactérias.
Muitos dos antibióticos disponíveis são provenientes de fungos e de bactérias presentes nos solos?
Cerca de dois terços dos antibióticos que utilizamos têm origem em microrganismos que vivem no solo, especialmente bactérias do género Streptomyces. O solo é um verdadeiro tesouro de biodiversidade microbiana, mas tal não significa que seja fácil extrair novos antibióticos a partir do mesmo.
Durante décadas, a comunidade científica analisou intensamente amostras de terra, mas começaram a encontrar sempre os mesmos compostos, como se estivessem a "pescar no mesmo lago", já que nos anos 50-60 (a época dourada da Microbiologia) se identificaram quase todas as famílias de antibióticos que dispomos atualmente a partir de amostras do solo. Muitos microrganismos do solo também são difíceis (ou impossíveis) de cultivar em laboratório, o que limita o seu estudo com as técnicas convencionais.
Contudo, a ciência está a reinventar-se. Já existem vários programas e iniciativas internacionais que voltaram a explorar o solo com novas ferramentas, como a metagenómica — uma abordagem que permite estudar o DNA de microrganismos diretamente da terra, sem precisar de os cultivar. Com os avanços na sequenciação genómica e o apoio de ferramentas de Inteligência Artificial, que ajudam a identificar novos compostos com potencial terapêutico, o futuro mostra-se mais promissor. No entanto, tudo dependerá do investimento contínuo nesta área de investigação, essencial para enfrentar a crise da resistência aos antibióticos.
Fale-me do projeto Micromundo, em que consiste?
O projeto MicroMundo consiste em quatro sessões que são dadas por estudantes universitários (acompanhados por um professor universitário ou investigador) a alunos do ensino básico ou secundário, em que o desafio é o de procurar microrganismos produtores de novos antibióticos em amostras de solos. Existe em Portugal desde 2018 e foi implementado primeiro na Universidade do Porto e depois no Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU.
Trata-se de um projeto internacional e atualmente está em mais de 30 países. A ideia é despertar os alunos para a problemática da resistência aos antibióticos, e os alunos fazem mesmo trabalho de campo (recolha de amostras de solos) e testam as amostras contra diferentes microrganismos de relevância clínica (fornecidos pela universidade).
Não podemos automedicar-nos com um antibiótico para uma simples dor de garganta, nem tomar menos tempo que o prescrito só porque já não temos sintomas.
Ana Raquel Freitas, professora de bacteriologia e microbiologia no Instituto Universitário de Ciências da Saúde
Cargo
Já houve achados importantes em edições anteriores?
Na edição de 2022/2023 encontraram-se nas amostras quatro potenciais positivos, infelizmente não se confirmaram com mais testes efetuados à posteriori. No entanto, na edição 2023/24 obtivemos e guardámos uma bactéria promissora com atividade antimicrobiana promissora contra bactérias relevantes – como a Staphylococcus aureus [infeções pós-cirúrgicas e de pele e intoxicação alimentar] e Escherichia coli [pode causar infecções urinárias ou gastroenterite].
Mas a jornada de uma molécula promissora é longa: precisa demonstrar eficácia contra bactérias resistentes, ser segura para utilização em humanos e permitir produção em larga escala a custos viáveis. Só assim poderá, um dia, transformar-se num novo antibiótico.
Qual foi até hoje o resultado mais surpreendente?
Foi, sem dúvida, uma estirpe de Bacillus cereus thuringiensis com resultados preliminares muito promissores, demonstrando atividade contra bactérias multirresistentes. Encontrar compostos ativos contra bactérias do grupo dos Gram-negativos, como Escherichia coli e ainda por cima resistente a vários antibióticos, é particularmente difícil, pelo que este achado nos deixou bastante entusiasmadas.
Curiosamente, esta bactéria foi isolada de um solo perto de campos agrícolas em Cristelo, no concelho de Paredes. Outro facto intrigante foi a grande diversidade de bactérias que conseguimos isolar a partir de um simples vaso de planta da sala de estar de um aluno da escola. Foi inesperado, uma vez que tendemos a associar maior biodiversidade a solos de ambientes mais selvagens.
Como pode o cidadão comum fazer algo para mudar o panorama e não agravar a resistência aos antibióticos?
Sem dúvida que a principal ação passa por garantir o uso adequado de antibióticos ao longo da vida, ou seja, não podemos automedicar-nos com um antibiótico para uma simples dor de garganta – porque até sobraram alguns comprimidos desde a última vez –, nem tomar menos tempo que o prescrito só porque já não temos sintomas.
Pequenos gestos como estes e outros até ambientais, como o de não depositar no lixo comum o que sobra dos antibióticos, contribuem muito para diminuir o impacto desta pandemia silenciosa. Neste sentido, acredito que a educação da população nas camadas mais jovens terá um forte impacto. Informações veiculadas de forma clara e simples têm de chegar a todos e é neste sentido que tenho participado no projeto MicroMundo desde 2018.
Outras medidas importantes incluem manter as boas práticas de higiene, nomeadamente das mãos – que são dos principais veículos de transmissão de bactérias; cozinhar bem os alimentos e garantir a boa higienização dos alimentos crus para evitar infeções de origem alimentar; e ainda não esquecer a vacinação, pois temos vacinas que previnem infeções bacterianas muito importantes.
Quem são as pessoas mais vulneráveis e porquê?
São, sobretudo, os idosos, porque têm o sistema imunitário mais frágil e, muitas vezes, condições de saúde crónicas que requerem tratamentos frequentes com antibióticos. Também doentes hospitalizados, especialmente em unidades de Cuidados Intensivos onde a exposição a bactérias resistentes é maior devido ao uso intensivo de antibióticos e ao contacto com equipamentos médicos invasivos.
No geral, pessoas imunocomprometidas – como doentes oncológicos, transplantados ou com VIH, cuja defesa natural contra infeções é reduzida. E as crianças pequenas já que o sistema imunitário está ainda imaturo e são então mais propensas a infeções.
Finalmente, populações com acesso limitado a cuidados de saúde adequados – em muitos contextos, há uso indiscriminado de antibióticos, falta de diagnóstico correto e ausência de controlo de infeções – daí que a OMS reconheça hoje a pobreza como um fator importante a ter em conta dentro desta problemática.
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