Sábado – Pense por si

Nuno Rogeiro
Nuno Rogeiro
18 de agosto de 2023 às 20:00

A paz. Mas qual?

Do Papa a Guterres, dos governos mais fortes aos mais obscuros, nos lares e nas discussões, ninguém de boa-fé e boa vontade está contra a paz na Ucrânia. Só os agressores desejam a guerra. Mas se é fácil identificar esta, é mais difícil descobrir aquela.

Em 1648, após 8 milhões de mortos, a Europa terminou a sua última batalha de religião, a Guerra dos 30 anos. A cidade de Münster colocou então como lema municipal uma antiga passagem latina (lamento sobre as Guerras Púnicas), Pax Optima Rerum: “A Paz é a melhor das coisas.” Iniciava-se então a chamada Paz de Westfália, que saldava décadas de lutas entre imperadores católicos e reis protestantes, batalhas civis e internacionais, guerras de conquista, reconquista e restauração, e campanhas confessionais, ou alegadamente espirituais, que se tornaram reivindicações de território. Mas os tratados que punham fim à guerra devastadora não se limitavam ao calar das armas e ao sarar das feridas. Prometiam uma nova ordem europeia, onde todos os Estados teriam a mesma dignidade, e um tratamento igual perante as leis e os costumes internacionalmente acertados. A definição de “paz” passou das mentes para os tratados e para os teóricos, laicos ou confessionais. Seria a “paz” a mera inexistência de violência física entre Estados, ou aquela e a verificação de elementos mínimos de “justiça”? Uma paz de cemitérios, ou de opressão interna, ou de medo diário na expressão de opiniões ou vontades, ou de prisões ao fim da noite, ou de desaparecimentos misteriosos de entes queridos, ou de torturas e chantagens, seria uma paz entre aspas. É este o problema central que nos coloca a invasão, violação e continuada brutalização da Ucrânia. Todos os bons pais e mães de família, todas as pessoas de bem, com ou sem fé religiosa, querem a paz para a Ucrânia. A começar pelo homem que, pelo exemplo, decidiu ficar com o seu povo, em vez de fugir e formar um governo no exílio. Mas como é que se atinge uma paz sem aspas, onde possam calar-se os canhões e triunfar o direito dos ucranianos a viver na sua terra? Para estes, como dizia Zelensky há pouco, de lágrimas contidas nos olhos, não há lugar para onde fugir. Segunda pátria. Cidadania de férias. Planeta B, como se diz hoje. Independentemente de saber os resultados da contraofensiva ucraniana, que começou realmente a meio de junho, diz-se que importa refletir sobre uma “paz justa” no país. Mas essa análise terá de ter em conta as “realidades no terreno”, e em tal sentido liga-se ao dito contra-ataque. É impossível destruir este nexo. Apesar de possuir ainda 31 brigadas em formação ou em reserva, Kiev teve já de lançar nas várias frentes um grande número de homens e material. O seu problema não é tanto humano, mas relativo a equipamento capaz. Este não existe nem para operações de Airland Battle, segundo o modelo NATO, dado que a aviação tática e de defesa aérea ucraniana está toda contada (apesar dos reforços dos últimos seis meses) e precisa de se poupar, nem para atuações técnicas específicas dentro da pouco conhecida doutrina ucraniana (próxima da israelita, mas sem poder aéreo dominante), incluindo a melhor maneira de eliminar campos saturados de minas. No fundo, só se saberá se a iniciativa ucraniana teve sucesso, por exemplo no isolamento da Crimeia, ou no regresso ao centro do mar Negro e ao mar de Azov, no fim de setembro. Recorde-se que para reconquistar Kherson em 2022, numa linha da frente muito menor, e sem defesas russas tão elaboradas como agora, os ucranianos demoraram mais de três meses. Por outro lado, a Rússia colocou-se num dilema. Ao integrar constitucionalmente no seu território federal as províncias de Kherson e Zaporizhia, não só violou os princípios territoriais declarados da Operação Militar Especial (“libertar o Donbass”), mas passou a viver sob o risco de perder parte do território nacional, por inferioridade, incompetência ou exaustão. A Ucrânia possui um mínimo inegociável: o seu território ocupado desde 2022. Noutras áreas – formas de punição, reconstrução e indemnização, modalidades de discussão do resto do espaço contestado – podem sentar-se pessoas à mesa. Tudo isto pesa, na reflexão sobre a “paz”.

Para continuar a ler
Já tem conta? Faça login

Assinatura Digital SÁBADO GRÁTIS
durante 2 anos, para jovens dos 15 aos 18 anos.

Saber Mais

Férias no Alentejo

Trazemos-lhe um guia para aproveitar o melhor do Alentejo litoral. E ainda: um negócio fraudulento com vistos gold que envolveu 10 milhões de euros e uma entrevista ao filósofo José Gil.