Acho que o sr. Aurélio era o melhor contínuo do Mundo, mas não há prémios para pessoas como ele
Contínuo. Nunca faltou ao trabalho em quase 50 anos de carreira. Por vezes, ficava a ouvir as histórias do sr. Aurélio, o contínuo que começou a trabalhar para aquela escola como moço de recados aos 9 anos. Gostavam dele e foi fazendo outras coisas na escola, um pouco de tudo, até de director quando o director estava de férias, a escola vazia e o sr. Aurélio continuava a afinar os toques para que nada falhasse no momento de ensinar aos miúdos que há horas urgentes, "que não vão ter sempre a campainha, rapaziada, para saberem o que têm de fazer." Ele era especial. Disfarçava, mas apanhei-o várias vezes de olhos raiados, aqueles olhos de quem se concentra muito para as lágrimas rebentarem todas na retina e caírem para dentro, quando o toque de entrada falhava como um velho que reaprendia a bolçar só para doer muito a morte antiga da mãe. Isto disse-me o sr. Aurélio, que às vezes precisamos de fazer alguma coisa, como sabotar a campainha, para não deixarmos ir quem amámos. "Há coisas que têm de doer todos os dias, rapaz, todos os dias." Despedia-se com aquela mania que os adultos têm quando dizem coisas cifradas, sinal de confraria, antes de nos estragarem o penteado com o previsível "um dia vais perceber". O sr. Aurélio era quase quase igual, mas costumava acrescentar "muitos anos a virar francos". Eu ria. "Frangos, diz-se frangos, sr. Aurélio". Só muito mais tarde soube o que era dislexia. Ele sorria. Parecia embaraço.
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O descontentamento que se vive dentro da Polícia de Segurança Pública resulta de décadas de acumulação de fragilidades estruturais: salários de entrada pouco acima do mínimo nacional, suplementos que não refletem o risco real da função, instalações degradadas e falta de meios operacionais.