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Pedro Proença Advogado
12.09.2025

A glória da impunidade

Abrem-se inquéritos, anunciam-se auditorias, multiplicam-se declarações de pesar e decreta-se luto nacional. Mas os dirigentes continuam nos seus cargos, os responsáveis políticos limitam-se a transmitir solidariedade às famílias e a responsabilização dissolve-se.

Quando uma tragédia acontece num país, espera-se que as instituições respondam não apenas com declarações de pesar, mas com actos concretos de assumpção de responsabilidade.

Em democracias sólidas, isso significa muitas vezes demissões imediatas de governantes ou de dirigentes de empresas públicas sempre que se identificam falhas de manutenção, de fiscalização ou de planeamento. Essa reação não depende de uma sentença judicial. Trata-se de responsabilidade política e institucional, de preservar a confiança dos cidadãos.

A nível internacional os exemplos dessa cultura de responsabilidade são abundantes: Na Grécia, após o desastre ferroviário de Tempi em 2023, que vitimou dezenas de pessoas, o ministro dos Transportes apresentou de imediato a sua demissão, reconhecendo que os atrasos na modernização do sistema ferroviário tinham contribuído para a tragédia. O gesto não ressuscitou vidas, mas simbolizou respeito pelo cargo e pelos cidadãos.

Na Coreia do Sul, em 1994, quando a ponte Seongsu em seul colapsou matando 32 pessoas, tanto o presidente da câmara da capital como o primeiro-ministro apresentaram a demissão. Não houve hesitação em assumir que a falha não era apenas técnica, mas política pois havia responsabilidades na gestão da infraestrutura.

Na China, onde a cultura de prestação de contas ao público é menos transparente, as inundações no metro de Zhengzhou em 2021 levaram à queda de dirigentes locais: o presidente da câmara foi despromovido , diversos autarcas foram afastados e vários técnicos acabaram detidos. O mesmo aconteceu no Irão, em 2016, quando uma colisão ferroviária levou à saída imediata do presidente da empresa ferroviária estatal.

Em Itália, depois da queda do teleférico de Stresa–Mottarone em 2021, descobriu-se que o sistema de travagem de emergência estava desactivado. Três responsáveis da empresa foram presos e acusados de homicídio. Em França, o desastre do Plateau de Bure, em 1999, resultou em condenações de técnicos e do director do observatório responsável.

Estes exemplos mostram uma cultura clara: quando falha a segurança, não se perde apenas um cabo de aço ou uma soldadura: Perde-se a confiança pública. E essa só se recupera com consequências visíveis.

Em Portugal, a regra parece ser a inversa. Tragédias sucedem-se. Desde os grandes incêndios florestais, a quedas de estradas e pontes, a derrocadas em zonas costeiras, e agora o trágico incidente no Elevador da Glória em Lisboa. Comum a todos estes incidente é que quase que não há consequências institucionais.

O guião repete-se. Abrem-se inquéritos, anunciam-se auditorias, multiplicam-se declarações de pesar e decreta-se luto nacional. Mas os dirigentes continuam nos seus cargos, os responsáveis políticos limitam-se a transmitir solidariedade às famílias e a responsabilização dissolve-se numa teia de comissões e relatórios que, meses depois, já ninguém acompanha.

O resultado é perverso. Cria-se a sensação de que em Portugal os acidentes têm vítimas, mas nunca têm culpados. Prevalece a ideia e “falha invisível”, de “fatalidade técnica”, como se os cabos se soltassem por acção de uma mão invisível, os incêndios se ateassem sem falhas de prevenção, ou as estruturas desabassem sem que ninguém tivesse a obrigação de verificar o seu estado.

Há várias razões que explicam este desfasamento de Portugal face à realidade internacional. Desde logo a cultura política. Entre nós, a demissão é vista como derrota ou fraqueza, quando deveria ser entendida como gesto de dignidade democrática.

Por outro lado, as estruturas partidárias tendem a proteger os seus dirigentes, mesmo perante evidências de falha, numa lógica de autopreservação.

Por fim a judicialização excessiva dos casos, pois espera-se muitas vezes que seja a justiça a apontar culpados, quando a responsabilidade política é independente da criminal.

Em países com uma cultura de prestação de contas, a demissão não significa necessariamente culpa pessoal, mas a aceitação de que houve falha institucional sob determinada tutela. É uma forma de mostrar à sociedade que se reconhece a perda de confiança e que é preciso abrir caminho a uma nova liderança.

Portugal precisa urgentemente de importar esta cultura de responsabilidade. Não basta lamentar e decretar lutos oficiais. Não basta abrir mais um inquérito cujo relatório, quando publicado, já não terá eco mediático. O país exige transparência, coragem política e respeito pelas vítimas.

A demissão, em certas circunstâncias, não é um castigo. É antes um acto de ética pública. É a forma de reconhecer perante os cidadãos que se falhou, que a confiança se perdeu e que só pode ser restaurada com novas lideranças.

Enquanto continuarmos a tratar a responsabilidade política como tabu, viveremos num país onde os desastres urbanos se somam às estatísticas, mas onde ninguém paga o preço institucional. E assim Portugal permanecerá uma exceção negativa. Um país onde a impunidade termina em glória e onde as tragédias têm sempre mortos, mas nunca responsáveis.

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