Os eGates do Aeroporto de Lisboa: a culpa não é da PSP, é da falta de visão do Estado
O que se tem pedido aos polícias nos aeroportos é que se transformem em técnicos de informática, tradutores, assistentes de turismo e até operadores de máquinas de reconhecimento facial. Isto não é função policial.
Nos últimos meses, multiplicam-se as imagens e os relatos de caos nas zonas de controlo de passaportes do Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Passageiros amontoados, filas intermináveis, máquinas avariadas e um clima geral de desorganização que deixa má imagem do país junto de quem nos visita. No centro de tudo, estão os chamados eGates, os portões automáticos de controlo de fronteira que deveriam representar a modernidade tecnológica do sistema aeroportuário português. Mas, em vez disso, tornaram-se o símbolo de uma má gestão estrutural.
Infelizmente, a reação mais comum é culpar a Polícia de Segurança Pública (PSP). É fácil apontar o dedo a quem está visível, fardado e no terreno. No entanto, essa crítica é não apenas injusta como intelectualmente desonesta. A PSP não é, nem deve ser, responsável por falhas tecnológicas ou pela falta de planeamento logístico. O que se tem passado no Aeroporto de Lisboa é uma demonstração clara de como o Estado português continua a utilizar as forças de segurança como um “canivete suíço” — um remendo para tudo o que corre mal, mesmo quando não é da sua competência.
Os agentes da PSP estão ali para garantir a segurança pública, manter a ordem, prevenir crimes e proteger os cidadãos. O que se tem pedido aos polícias nos aeroportos é que se transformem em técnicos de informática, tradutores, assistentes de turismo e até operadores de máquinas de reconhecimento facial. Isto não é função policial. É desvio de missão. E é, acima de tudo, um reflexo da desorganização e da ausência de políticas públicas inteligentes.
Os eGates, que deveriam ser uma solução moderna e eficiente, falham frequentemente. São máquinas sensíveis, dependentes de software, manutenção e calibragem constante. A empresa fornecedora, que recebeu milhões de euros em contratos públicos, deveria ter equipas técnicas no terreno para garantir o funcionamento contínuo do sistema. No entanto, raramente se vê um técnico de suporte junto às máquinas. Quando algo falha, o passageiro olha em redor e, inevitavelmente, recorre ao agente da PSP. O agente, por sua vez, tem de interromper a sua função de segurança para tentar ajudar ou, pior ainda, para gerir a frustração dos passageiros.
Esta situação é insustentável. E é um erro político, não policial. O Estado não pode continuar a contratar empresas que vendem tecnologia sem assegurar que essas mesmas empresas prestam assistência técnica permanente no local. É uma questão de responsabilidade contratual e de gestão pública. O problema não é da PSP — é do modelo de funcionamento que o Estado montou.
O mais grave é que esta sobrecarga de tarefas sobre os agentes da PSP cria uma perceção pública de ineficiência e desorganização policial. Nada poderia ser mais injusto. Quando vemos polícias a orientar filas, a reiniciar máquinas ou a ajudar turistas perdidos, esquecemo-nos de que essas pessoas são profissionais de segurança, formados para prevenir e responder a ameaças. E não técnicos de apoio ao utilizador.
O Aeroporto de Lisboa é uma infraestrutura crítica. O controlo de fronteira é um tema de soberania nacional e segurança europeia. O mau funcionamento dos eGates não é apenas um problema técnico — é um risco reputacional e de segurança. Um aeroporto onde a atenção dos agentes está dispersa entre “desbloquear máquinas” e “acalmar turistas” é um aeroporto menos seguro.
O que o Estado português devia fazer é simples: criar programas de estágios profissionais para jovens recém-saídos do 12.º ano. Milhares de jovens terminam a escolaridade sem acesso imediato ao ensino superior e procuram experiências profissionais que valorizem o currículo. Por que não canalizar parte dessa energia para o apoio ao funcionamento dos aeroportos?
Estes jovens poderiam ser integrados em programas de curta duração, remunerados e supervisionados pela ANA – Aeroportos de Portugal, com formação em atendimento, operação básica de sistemas eletrónicos e gestão de fluxos de passageiros. Seriam o rosto acolhedor que explicaria aos passageiros como usar os eGates, ajudando-os a posicionar o passaporte, a olhar para a câmara corretamente, a compreender as instruções.
Desta forma, libertar-se-ia a PSP para o que realmente lhe compete: proteger, prevenir, vigiar e garantir a ordem pública. Não é aceitável que um agente da PSP, formado com base em princípios de segurança e investigação criminal, tenha de passar o turno a explicar a turistas onde colocar o passaporte ou a limpar sensores de leitura facial.
Além disso, o impacto social de um programa destes seria altamente positivo. Permitiria inserir jovens no mercado de trabalho, promover o espírito cívico e reduzir o desemprego jovem. O Estado estaria a investir em capital humano e em literacia tecnológica, enquanto reforçava o bom funcionamento das infraestruturas públicas. Seria um exemplo de política pública moderna e eficiente — e de respeito pela função policial.
Mas, em vez disso, o que vemos é o Estado ausente. O mesmo Estado que exige da PSP tudo, mas raramente lhe dá os meios adequados. O mesmo Estado que contrata tecnologia, mas não fiscaliza a sua implementação. O mesmo Estado que fala em digitalização e eficiência, mas continua a depender do improviso dos seus agentes para apagar fogos que não são da sua responsabilidade.
É urgente inverter esta lógica. A tecnologia não serve de nada se não houver uma estrutura humana de apoio. E a polícia não pode continuar a ser o tampão universal de um sistema que falha por falta de visão. Os eGates podem ser um sucesso — se houver manutenção técnica, acompanhamento humano e coordenação entre entidades. Mas, neste momento, o que há é desresponsabilização.
A responsabilidade política é clara: o Ministério da Administração Interna e a ANA têm de reformular o modelo de funcionamento do controlo de fronteiras. As empresas contratadas têm de garantir presença técnica no terreno. E o Estado tem de criar um programa de apoio jovem que substitua a intervenção indevida da PSP nas tarefas de suporte tecnológico.
Portugal precisa de um aeroporto moderno, funcional e seguro. E isso só acontecerá quando a PSP puder cumprir o seu papel — o de garantir a segurança — e deixar de ser obrigada a fazer de “técnico de balcão”. A modernização tecnológica não é substituir pessoas por máquinas; é reorganizar a estrutura de modo a libertar os profissionais para o que realmente importa.
Se queremos ser um país que acolhe turistas com dignidade e que trata as suas forças de segurança com respeito, então está na hora de repensar o papel da PSP no aeroporto e devolver-lhe a missão que lhe pertence: proteger, e não substituir o que o Estado negligencia.
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