Quando o Trabalho Nos Habita: O Desafio da Saúde Mental dos Magistrados
A saúde mental dos procuradores é um desafio urgente e global que exige mudanças concretas, sobretudo na cultura de trabalho e no apoio institucional.
Atravessando fronteiras e línguas, a inquietação quanto à saúde mental dos procuradores tornou-se tema universal, atravessando gabinetes, corredores e salas de tribunais por todo o mundo. O stress, que durante anos se julgou inerente e inquestionável à função, emerge agora como matéria de debate, reflexão e – em tímidos passos – transformação. Recentemente, participei na conferência anual da Associação Internacional de Procuradores, num ambiente marcado por uma preocupação crescente, onde um dos painéis foi inteiramente dedicado a este fenómeno, inquietante, mas infelizmente muito real.
O painel, apresentado por duas procuradoras canadianas e uma psicóloga clínica, desenhou um quadro onde antes reinava o silêncio. Falou-se da passagem necessária do paradigma reativo para o proativo, convocando para o centro do debate o papel do ambiente de trabalho, não como cenário, mas como protagonista.
O ambiente interno, entendido como o conjunto de práticas, atitudes e valores que moldam as relações entre os procuradores e a forma como encaram o seu trabalho diário, é crucial para o bem-estar coletivo. Esta cultura traduz-se na disponibilidade para ouvir e apoiar os colegas, no reconhecimento da importância das pausas — que não devem ser vistas como luxos, mas como momentos essenciais para reencontrar o equilíbrio pessoal e a empatia — e na normalização do recurso a aconselhamento confidencial. Todos estes aspetos configuram a base da resiliência profissional. Poucos poderiam imaginar que medidas aparentemente simples, como integrar o bem-estar mental nas avaliações de desempenho, criar espaços que permitam “desligar” da pressão constante e desencorajar comportamentos tóxicos continuamente prontos a surgir nos meandros do dia a dia forense, pudessem representar o início de uma verdadeira transformação.
Na narrativa destas vozes distantes, mas estranhamente próximas, ficava claro que investir em iniciativas centradas nas pessoas, abraçar a literacia em saúde mental, abordar as dificuldades sem tabus e fazer do ambiente de trabalho uma prioridade estratégica revela, mais do que nunca, uma urgência que transcende geografias. Promover eventos familiares ou celebrações de aniversário, facilitar momentos de lazer e relaxamento, abrir espaço ao mindfulness e à discussão honesta, realizar inquéritos internos e criar atividades que despertem o sentido de pertença são, dizem, gestos concretos que ajudam a resgatar magistrados da invisibilidade do sofrimento.
Olhando para a realidade portuguesa, é impossível ignorar que muito deste percurso permanece por trilhar. As recomendações do estudo do Observatório da Justiça sobre o desgaste profissional e burnout, nomeadamente a implementação de planos de segurança e saúde no trabalho e conciliação entre vida profissional, pessoal e familiar, continuam por implementar (sem que se vislumbre quanto tal irá finalmente acontecer). Não existe formação estruturada e contínua sobre o burnout e o trauma secundário, nem uma política de resiliência que ultrapasse o ocasional e o voluntarismo de quem organiza, à margem, iniciativas de bem-estar. Com exceção das atividades promovidas pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a construção de uma cultura de saúde mental efetiva persiste como miragem. Os sintomas em causa são conhecidos: insónias, distúrbios digestivos, alterações de apetite, hipervigilância, crescente irritação, défice de concentração, tristeza, problemas dermatológicos e, nos silêncios mais calados, comportamentos de afastamento e autodestruição.
Não surpreende, por isso, que o painel internacional tenha insistido na necessidade de criar estratégias concretas para mitigar estes impactos. Falar de saúde mental não é, aqui, apenas reconhecer o sofrimento, mas construir respostas. O caminho sugerido percorre quatro territórios: promover ativamente a literacia e o bem-estar, prevenir danos ao antecipar riscos e fortalecer mecanismos de coping (processo psicológico que envolve tomar consciência de uma situação stressante e escolher ações para lidar com ela), intervir com antecedência ao reconhecer sinais de vulnerabilidade e apoiar verdadeiramente a recuperação, garantindo comunicação e ajustamento das condições laborais.
Entre as sugestões, uma ressoa com particular força: aprender a circunscrever o trabalho ao trabalho, criar rotinas que permitam uma separação real entre vida profissional e vida privada. É, talvez, a mais difícil de implementar, face ao contexto nacional, onde a Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior do Ministério Público mantêm uma distância institucional perante esta urgência. Mas ainda assim, importa sonhá-la – e começar, ainda que timidamente, a construí-la.
A saúde mental dos procuradores é um desafio urgente e global que exige mudanças concretas, sobretudo na cultura de trabalho e no apoio institucional. Em Portugal, é imprescindível implementar as recomendações internacionais e nacionais que promovam uma gestão consciente do stress, fomentem a resiliência e garantam um equilíbrio real entre vida profissional e pessoal, condições essenciais para a eficácia e dignidade do sistema de justiça.
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