Quando a verdade se torna irrelevante
A separação de poderes é esquecida por quem instrumentaliza casos mediáticos para tentar capturar ou condicionar a investigação penal.
A verdade é tratada, cada vez mais, como um detalhe descartável sempre que serve um ataque político à Justiça e ao Ministério Público.
Ao mesmo tempo, a separação de poderes é esquecida por quem instrumentaliza casos mediáticos para tentar capturar ou condicionar a investigação penal.
Assim que uma simples gota agita o oceano da justiça, logo surgem – quase sempre os mesmos rostos de sempre, bem conhecidos de todos – a cerrar fileiras e a lançar ataques ferozes ao Ministério Público e aos seus magistrados
Não esperam para saber se o que comentam é verdadeiro ou falso, nem se preocupam em perceber os contornos concretos dos factos em causa. Para esse grupo, a verdade tornou-se um elemento meramente acessório, só relevante quando confirma os seus preconceitos sobre a justiça e sobre o Ministério Público.
Importa, por isso, recordar o que efetivamente sucedeu recentemente.
No dia 20 de novembro, o Diário de Notícias publicou uma notícia segundo a qual mais de duas dezenas de escutas em que o então primeiro-ministro interveio, entre 2020 e 2022, só teriam sido remetidas ao Supremo Tribunal de Justiça em outubro passado, quando este já não teria competência para as validar, tendo sido alegadamente omitidas ao STJ e ao Tribunal Central de Instrução Criminal.
No dia seguinte, o DCIAP divulgou um comunicado esclarecendo pontos essenciais e contrariando a narrativa que vinha sendo difundida em parte da comunicação social.
Ficou aí esclarecido que todas as escutas telefónicas realizadas no âmbito desses processos, sem exceção, foram submetidas tempestivamente ao controlo periódico do juiz de instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal. Ficou igualmente clarificado que o ex-primeiro-ministro António Costa nunca foi diretamente alvo de escutas telefónicas nem de vigilâncias, tendo apenas surgido, de forma incidental, em comunicações intercetadas a outras pessoas, as quais foram sempre comunicadas ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Mais recentemente, no decurso de nova análise exaustiva, foram identificadas seis tentativas de contacto e uma comunicação em que António Costa era interveniente, que não tinham sido detetadas inicialmente; essas comunicações foram imediatamente formalizadas no processo e remetidas ao Presidente do STJ, que se declarou incompetente por o visado não ser, à data, primeiro-ministro, devolvendo o expediente ao juiz de instrução, o qual considerou não haver mais nada a determinar, dado o controlo já realizado nos termos do artigo 188.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
A realidade factual, tal como descrita na comunicação oficial do DCIAP, é assim substancialmente distinta daquela que alguns órgãos de comunicação social apressadamente divulgaram. Apesar disso, vários comentadores e responsáveis políticos optaram por ignorar o esclarecimento oficial e persistiram na repetição da versão inicial, objetivamente falsa, consolidando perceções distorcidas na opinião pública sobre a atuação do Ministério Público.
A pergunta impõe-se: fazem-no por descuido e leviandade, ou com um propósito político bem definido? O efeito destas narrativas não é neutro. Ao cristalizar na sociedade a ideia de um Ministério Público descontrolado e irresponsável, abre-se caminho a “reformas” que, na prática, visam sujeitar a investigação penal a critérios e conveniências políticas.
Não se trata de aperfeiçoar o sistema, de reforçar garantias ou transparência; trata-se, isso sim, de diminuir a margem de independência de quem investiga a criminalidade económico-financeira e a corrupção. Confundir estes dois planos – crítica séria e legítima, por um lado, e tentativa de captura institucional, por outro – é um erro que a sociedade portuguesa não se pode permitir.
Alguns, mais uma vez, no espaço político e no circuito permanente do comentário, parecem ter esquecido que a separação de poderes é o que distingue um Estado de Direito de um regime meramente formal. As lições recentes de países como a Polónia, a Hungria ou a Turquia mostram o que acontece quando o poder político decide subordinar ou punir magistrados que não servem os seus interesses. A persistência de discursos que procuram transformar o Ministério Público num adversário político revela que uma parte da classe política portuguesa não aprendeu, ou não quer aprender, com esses exemplos.
Há quem procure, a todo o custo, alimentar um clima de confronto permanente entre justiça e política – ou, para ser mais rigoroso, entre a justiça e determinados setores da política.
Num verdadeiro Estado de Direito, os poderes executivo, legislativo e judicial (incluindo o Ministério Público) não se sobrepõem nem se intimidam mutuamente, intervindo apenas nos termos estritos da Constituição e da lei.
Quando titulares de cargos políticos ou “movimentos cívicos autoproclamados de reforma da justiça” pretendem condicionar publicamente processos judiciais em curso, não estão a exercer o legítimo escrutínio democrático; estão, antes, a exercer pressão sobre instituições que devem manter-se independentes, inclusive face às maiorias conjunturais.
Outra dimensão frequentemente omitida no debate é que as interceções telefónicas são sempre autorizadas e controladas por um juiz de instrução criminal, que verifica se estão reunidos todos os pressupostos legais. As críticas indiscriminadas dirigidas ao regime das escutas não recaem, pois, apenas sobre o Ministério Público, mas também sobre a magistratura judicial que as valida. Omite-se este dado essencial para reforçar uma narrativa de “abusos” imputados apenas aos magistrados do Ministério Público, quando, na verdade, se trata de um mecanismo partilhado de responsabilidade entre magistrado do Ministério Público e juiz de instrução.
Convém igualmente recordar que Portugal dispõe, em comparação com muitos outros países europeus, de um dos regimes mais restritivos e garantísticos em matéria de interceções telefónicas. Em vários ordenamentos, a realização de escutas não depende sequer de autorização judicial prévia ou de controlo periódico das renovações, ao contrário do que sucede no regime português.
Se há algo que caracteriza o nosso sistema não é a leviandade com que se escuta, mas antes o nível elevado de formalismo, exigência probatória e escrutínio judicial que a lei impõe.
Neste contexto, nunca é demais sublinhar as recomendações do Conselho da Europa, designadamente através do Conselho Consultivo de Procuradores Europeus, que reiteram que a independência do Ministério Público é um pré-requisito para a independência do poder judicial e para a própria existência de um Estado de Direito digno desse nome.
Essa independência não é um privilégio corporativo; é uma garantia para os cidadãos de que a lei será aplicada sem medo nem favores, independentemente da posição social ou política do investigado.
Os magistrados do Ministério Público devem ser autónomos nas suas decisões processuais e desempenhar as suas funções livres de pressões externas ou interferências, sempre dentro dos princípios da legalidade, da separação de poderes e da prestação de contas. Isso implica, simultaneamente, transparência, responsabilidade e um escrutínio público informado, que se faça sobre factos e não sobre boatos ou campanhas de desinformação.
Defender a independência do Ministério Público é, em última análise, defender o direito dos cidadãos a uma justiça que não se ajoelha perante o poder político.
Quando a verdade deixa de importar e a separação de poderes é relativizada, o caminho fica aberto para reformas feitas à medida de quem teme a justiça, e não de quem precisa dela.
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