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Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
14.10.2025

Da averiguação disciplinar à sindicância processual: um passo perigoso

A averiguação só se justifica quando há margem legal para instaurar procedimento disciplinar.

Foi notícia, esta semana, a deliberação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) que aprovou a abertura de um processo de averiguação, nos termos do artigo 264.º do Estatuto do Ministério Público (EMP).

Segundo o Jornal Público, na edição de 10/10/2025, “apesar de a discussão sobre o inquérito que teve como alvo o juiz Ivo Rosa ter sido suscitada na última reunião do CSMP, na passada quarta-feira, por um membro que não é magistrado, a proposta para instaurar uma averiguação à atuação dos procuradores que intervieram no caso contou com o voto favorável do Procurador-Geral da República e dos quatro procuradores regionais, ou seja, da cúpula do Ministério Público”.

Importa precisar o que está em causa quando se fala num processo de averiguação instaurado ao abrigo do referido artigo 264.º do EMP.

A Secção IV do Estatuto, sob a epígrafe “Procedimento disciplinar”, regula esta matéria, distinguindo o procedimento disciplinar comum do especial. O procedimento disciplinar constitui o mecanismo previsto para efetivar a responsabilidade disciplinar dos magistrados do Ministério Público.

Na Subsecção II, relativa aos “Procedimentos especiais”, o artigo 264.º do Estatuto do Ministério Público estabelece que o Conselho Superior do Ministério Público pode determinar a realização de um processo de averiguação com base em queixa, participação ou informação que não revele de forma manifesta a violação dos deveres funcionais dos magistrados do Ministério Público, destinando-se tal processo a verificar a veracidade desses elementos e a avaliar se a conduta denunciada é suscetível de constituir infração disciplinar.

Este mecanismo representa sempre uma fase prévia, concebida para situações em que os factos conhecidos não evidenciam, de forma clara, a violação dos deveres funcionais – circunstância em que, de imediato, deveria instaurar-se processo disciplinar. A sua finalidade é, pois, verificar se existem elementos que sustentem a abertura desse processo.

A averiguação só se justifica quando há margem legal para instaurar procedimento disciplinar. No caso concreto, tal possibilidade não se verifica. A informação disponível indica que o inquérito criminal de que se trata foi arquivado em março de 2024, o que significa que já decorreu mais de um ano e meio sobre essa decisão.

Nos termos do artigo 208.º, n.º 1, do EMP, a responsabilidade disciplinar extingue-se por caducidade ou prescrição. O artigo 209.º, n.º 1, estabelece que o direito de instaurar procedimento disciplinar caduca no prazo de um ano a contar da prática da infração. Assim, na presente situação, esse direito já se encontra caducado.

Surge, então, a questão: por que motivo se determina a abertura de um processo de averiguação – cuja única finalidade é avaliar se deve instaurar-se procedimento disciplinar – quando já se sabe que caducou o direito de o instaurar?

Ora, uma eventual responsabilidade disciplinar (que a averiguação visa apurar) extingue-se por caducidade e prescrição do procedimento disciplinar (artigos 208.º, n.1 do EMP).

O que se pretende, afinal, é um escrutínio disciplinar ou algo de natureza distinta?

Com esta deliberação, o CSMP parece ter cedido a pressões para intervir na fiscalização de processos concretos fora do âmbito das suas competências. O escrutínio dos inquéritos penais deve ser efetuado através dos mecanismos previstos na legislação processual penal, e não por via de um processo de averiguação que extravase a sua função estatutária.

O CSMP é, em Portugal, o órgão de gestão e disciplina da magistratura do Ministério Público. Compete-lhe, entre outras atribuições, a nomeação, colocação, promoção, transferência, exoneração e avaliação de mérito dos magistrados, assim como o exercício da ação disciplinar. Embora possa, em situações específicas, apreciar matérias ligadas a processos concretos, tal competência limita-se a questões disciplinares, de gestão, de avaliação ou a outras expressamente previstas nas normas reguladoras do Ministério Público.

Não se inclui nas suas atribuições reexaminar ou escrutinar inquéritos apenas por discordância de alguém quanto à sua instauração, devendo, nesses casos, intervir a hierarquia do Ministério Público, nos termos do Código de Processo Penal e do EMP.

A deliberação ora em análise cria um precedente perigoso, legitimando pedidos ao CSMP para fiscalizar qualquer inquérito fora do domínio disciplinar e para sindicar, em concreto, a atuação dos magistrados, substituindo-se aos mecanismos processuais legalmente previstos para o controlo da fase de inquérito.

Não se trata de uma questão de transparência, mas de uma inversão de competências entre a hierarquia do Ministério Público e o CSMP. Como sintetizou Cunha Rodrigues, na emblemática formulação sobre o equilíbrio/dicotomia de poderes: “quem dirige (o Procurador-Geral da República) não coloca, não classifica nem pune; quem coloca, classifica e pune (o CSMP) não dirige”.

A decisão de ordenar esta averiguação relativamente a um inquérito arquivado há mais de um ano levanta sérias dúvidas quanto à sua conformidade legal e ao respeito pelos limites estatutários. O processo de averiguação é um instrumento prévio e restrito, destinado apenas a apurar se existem elementos para instaurar procedimento disciplinar dentro do prazo legal. Quando tal prazo já caducou, a sua utilização desvirtua a razão de ser do instituto e abre caminho a uma leitura amplificada – e potencialmente politizada – das competências do Conselho.

Ao deliberar neste sentido, o CSMP corre o risco de interferir, ainda que indiretamente, na apreciação de processos concretos e de criar um precedente que fragiliza a autonomia e a hierarquia interna do Ministério Público. Não está em causa a transparência, mas a preservação da fronteira institucional entre quem dirige e quem disciplina — um equilíbrio essencial à independência funcional e orgânica do Ministério Público.

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