“Fui”: a exaustão digital e o fim da internet como espaço social
As marcas continuam a fazer a sua aposta, quem escolheu tornar-se criador de conteúdo, também. Mas a verdade é que vivemos uma permanente encenação digital: não mostramos quem somos, mas o que os algoritmos recompensam. Contudo, sabemos que não serão exatamente os nossos interesses a orientar esta lógica.
Quando tudo começou, numa vida social que ultrapassava o que sempre entendemos por social, num paradigma em que o social passou a ser digital, ficámos surpresos. Rapidamente deslumbrados. As novas redes sociais digitais prolongavam e ampliavam a nossa vida social de formas nunca antes imaginadas. Estávamos presentes para participar. Queríamos ver e ser vistos. Depressa, a ideia de que outros nos observavam interferiu com a noção de identidade, que passou a ser construída através dessa presença nas redes sociais digitais. Da partilha inocente à performatividade instagramável foi um salto que ninguém percebeu: muitos de nós passaram a viver em função da foto perfeita, num cenário cuidadosamente criado para o Instagram, depois o TikTok. Primeiro foi a encenação. Depois veio o cansaço. A vida organizada para ser fotografada tornou-se uma vida organizada apenas para o ecrã. O algoritmo tornou-se o nosso espelho. Já não nos perguntamos quem somos, mas quanto valemos em alcance. Cansa.
A geração Z lidera esta tendência de exaustão digital. Diante da pressão em estar e ser perfeito, muitos desligam. Estão mas parece que não. Arquivam, entram em silêncio. Não é ausência: é recusa. É o cansaço de existir como produto. Outros deixam o seu perfil sem atualização durante meses, simplesmente cansados de viver para o feed, encontrando neste silêncio uma forma de lidar com o caos das redes sociais digitais. Outros queixam-se do fim da ideia de social, porque estas plataformas anularam o conteúdo do indivíduo comum, em favor de produções esteticamente curadas, marcas, notícias e conteúdo gerado por inteligência artificial. As redes sociais digitais já não são espaços sociais: são impérios mediáticos. As plataformas transformaram-se em canais. Os criadores, em fornecedores de conteúdo. Os utilizadores, em audiência silenciosa.
Publica-se menos, mas isso não significa partilhar menos. Voltamos gradualmente a recuperar a noção de espaço público e privado, deixámos de mostrar tudo sobre a nossa vida a quem quiser ver e passámos a interagir em pequenos grupos, de forma mais pessoal e privada. Simultaneamente, o conteúdo em circulação é profissional e desconectado da vida real. A real, não aquela que as redes sociais digitais assumiram como real: perfeita, organizada, estética. Como os algoritmos privilegiam determinados tipos de conteúdo e formatos, e porque o número se tornou a métrica de validação social (por vezes também profissional), há muito de falso neste contexto. Likes, comentários e mensagens, incluindo spam, soam a falso, levando muitos a permanecer sem se envolver. Se não há envolvimento, não há relação. Se não há relação, não é social. Se as redes sociais digitais deixam de ser sociais, tornam-se o quê? Se são espaços de performatividade institucional (de marcas, media e criadores de conteúdo) sem espaço para o amadorismo. Então, não serão antes plataformas de media, competindo com outras plataformas como as de streaming, num mundo que também neste campo pode sofrer reviravoltas significativas?
O problema não é uma compra que ainda não aconteceu. O problema é outro: poucas empresas concentram cada vez mais poder sobre o que vemos, lemos, ouvimos e desejamos. A eventual aquisição da Warner Bros, HBO e HBO Max pela Netflix pode criar um monopólio com menos escolhas e ainda menor diversidade. Mas o que importa isso quando vivemos num mundo dominado por algoritmos, quando aprendemos que não podemos dizer ou mostrar certas coisas nas redes sociais digitais para não sermos censurados, e construímos a nossa identidade, comunicamos e partilhamos a nossa vida através de plataformas que também uma só empresa domina? A Meta controla o Facebook, Instagram e WhatsApp. Controla-nos, indirecta e directamente.
Este movimento é paradigmático e talvez não seja apenas das redes sociais digitais que nos estamos a despedir, recuperando as velhas formas de viver em sociedade. Talvez também estejamos a abandonar a ideia de internet como espaço livre e, talvez por isso, “fui”, não apenas das redes sociais digitais, mas da ilusão de que a internet também era um espaço social.
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