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Nuno Cunha Rolo Jurista
19.10.2025

Políticas e programas ricos destinados aos mais pobres, mas desenhados para privilegiados

A evolução das políticas públicas de energia e ambiente, desde a década de 70, tem sido positiva, especialmente no domínio da agenda e formulação de políticas, atravessando governos diversos, embora muito por efeito da nossa integração europeia.

“Devido à elevada adesão ao programa E-Lar que, em seis dias, teve cerca de 40 mil candidaturas, encontra-se esgotada a dotação prevista para este aviso, no total de 30 milhões de euros. Por este motivo informamos que encerrou o período de submissão de candidaturas.”  - Informação 05/10/2025

Começo por dizer que a evolução das políticas públicas de energia e ambiente, desde a década de 70, tem sido positiva, especialmente no domínio da agenda e formulação de políticas, atravessando governos diversos, embora muito por efeito da nossa integração europeia. Além disso, elas são absolutamente determinantes para o sucesso de outras políticas públicas e desenvolvimento de setores económicos, em face da sua fundamentalidade natural e transversalidade setorial.

Porém, há um longo caminho a percorrer nas competências públicas de conceção e gestão de programas e projetos nacionais.    

Por outras palavras, o problema destes programas não está no mérito da iniciativa e dos objetivos, antes nos conteúdos e meios definidos para a sua implementação, o buraco negro das políticas públicas nacionais.   

O Fundo Ambiental (FA), o superfundo das referidas políticas, acumulando milhares de milhões de euros, criado em 2016 e financiado por vários impostos, taxas e multas nacionais, é um excelente exemplo das imensas debilidades da nossa capacidade de governação e gestão de políticas públicas, sem prejuízo de alguns bons resultados, o que seria de esperar em face de tão colossal dotação financeira.

O FA tem por finalidade apoiar e financiar políticas públicas ambientais para a prossecução dos objetivos do desenvolvimento sustentável, e é também a entidade à qual está consignada a gestão e decisão sobre a grande maioria dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinados à proteção do “Ambiente e à Ação Climática” que serão atribuídos até final de 2026. 

Os vários programas do FA (Vale Eficiência, Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis, Apoio a Condomínios Residenciais, E-Lar, entre outros), têm suscitado múltiplas queixas junto das autoridades e do portal da queixa do Estado.

No mais recente programa E-Lar ? programa lançado em agosto deste ano com vista a apoiar “todos os cidadãos”, “em especial as famílias mais vulneráveis”, a substituir fornos, fogões, esquentadores e caldeiras a gás por equipamentos elétricos ? centenas de consumidores foram excluídos da, até ver, primeira fase deste programa, reportando dificuldades técnicas, de acesso, compreensão e submissão do processo de candidaturas, incluindo faltas de apoio aos potenciais candidatos por parte da autoridade gestora do fundo. 

As pessoas não conseguem aceder à plataforma, quando fazem não conseguem aceder ao formulário de candidatura, quando o conseguem não percebem tudo aquilo que devem saber para submeter a candidatura e quando perguntam as respostas são difíceis ou impossíveis de implementar. Para mais, o programa destina-se, teoricamente, às pessoas mais vulneráveis e, amiúde, mais idosas, pobres e menos qualificadas ou letradas.

Mas este é apenas um dos oceanos de obstáculos que os consumidores enfrentam. O mais devastador é o súbito encerramento do programa, devido ao esgotamento das verbas do fundo, que acaba por favorecer, e, simultaneamente, discriminar, aqueles que, por falta de conhecimentos ou de “contactos”, não conseguem obter financiamento, mesmo sendo elegíveis.

Ou seja, o facto mais chocante dos programas de financiamento do FA é a incorporação da lógica “primeiro a chegar, primeiro a ser servido”, ou “first-come, first-served”, como é conhecida na literatura especializada.

Esta lógica ou modelo de programas públicos é muito comum no domínio da eficiência energética, contudo, são criticados na literatura científica, sobretudo económica, por produzirem ineficiências distributivas, desigualdades de acesso e resultados regressivos.

No domínio económico, estes resultados são estudados e fundados na denominada Economia Comportamental. Esta ensina – desde Adam Smith, passando por Herbert Simon e Richard Thaler, até Daniel Kahneman e Amos Tversky – que o ser humano não é integralmente racional nas suas escolhas e comportamentos, pois, a racionalidade está limitada por múltiplos fatores humanos, psíquicos, mentais e culturais, como, por exemplo, a atenção limitada, memória imperfeita, tendência à procrastinação, contexto decisório, experiências pessoais, julgamento e ação sob heurísticas e vieses sistemáticos, défices de atenção e conhecimento.

Estes estudos de limitação da racionalidade no processo de decisão e políticas conduziram, a partir dos anos 2000, diversos governos a criarem unidades especializadas (“nudge units”) para aplicar os seus conceitos e modelos nas políticas públicas, em especial na fase de formulação.

Na literatura económica e de políticas públicas, programas baseados no princípio “first-come, first-served” são definidos como mecanismos de alocação de recursos em que o acesso é determinado pela ordem de candidatura, sem ponderação explícita de mérito, custo-benefício ou impacto distributivo.

A maioria dos economistas e especialistas em políticas públicas não classifica estes programas como “nudging”. O nudge, segundo a obra “Nudge” de Richard Thaler & Cass Sunstein (2008), consubstancia uma alteração subtil do contexto de decisão que preserva a liberdade de escolha, mas orienta comportamentos desejáveis.

Os programas de “apoio por ordem de chegada” (first-come, first-served) não alteram o enquadramento das escolhas, mas incentivam competição de recursos escassos entre cidadãos cujo benefício deveria ser universal.

No essencial, são instrumentos de racionamento administrativo, não de economia comportamental, e podem gerar “rat races” e diversas desigualdades, discriminações e gozo de privilégios indevidos: quem tem literacia, idade, saúde, tempo e capital, humano ou financeiro, captura primeiro.

Contra as vantagens da maior rapidez na execução e menor despesa em custos administrativos, e tendencial propaganda política existem riscos de regressividade, free-riding, de ricochete (“rebound”), suboptimização tecnológica, exclusão digital, distorções de equidade, o que compromete a justiça distributiva e a eficácia ambiental dos programas.

Isto é, políticas baseadas na mera velocidade de candidatura contribuem para a ineficácia e ineficiência da prossecução dos seus objetivos, com a agravante de aumentarem a desigualdade e pobreza e erodirem o interesse público e a confiança social neste programas.

Ora, quem nos diz, na próxima fase ou novo programa, que o meu tempo e dinheiro investido não vai ser em vão? Como ter a certeza, previsibilidade e segurança de que a minha elegibilidade para o programa será cumprida pelo Estado??

Neste tipo de políticas que incentivam esquemas de “competição cívica por bens públicos”, os quais são, por definição e objeto, igualmente comuns e universais, a rapidez torna-se um critério de mérito, substituindo necessidade ou eficiência marginal. Assim, não há verdadeiramente nudge, mas, simplesmente, corrida ao subsídio, com falhas de equidade e eficácia distributiva.

A economia e a gestão de políticas públicas assinalam, contudo, alternativas: escalões por rendimento, leilões reversos, bónus por desempenho medido, janelas de candidatura mais longas, elegibilidades automáticas, mix entre subsídio, transparência e informação, métricas de justiça distributiva e de impacto, dashboards de execução em tempo real, exigências de políticas de prevenção da corrupção e conflitos de interesse públicas, entre outras.

Além da literatura científica, este tipo de políticas que privilegiam os primeiros entre iguais, são também alvo de críticas por parte de instituições de controlo financeiro, como o Tribunal de Contas Europeu, que o associa a decisões ineficientes e socialmente regressivas, por não priorizarem projetos com maior ganho energético ou valor social e prioritizarem rapidez sobre necessidade (ver relatório aqui).

Concluindo, os programas de financiamento público que sejam universais não podem ser desenhados e implementados para os primeiros candidatos, discriminando os demais cidadãos igualmente elegíveis, sob pena de serem capturados por privilegiados da informação, conhecimento, capital ou do setor.

Estes programas devem ser devidamente planeados, inclusivos e diagnosticados, em especial no domínio da sua implementação, máxime, acesso, compreensão, assistência, submissão de candidatura, transparência de critérios e decisões.

Estas lições ajudam a mitigar os riscos de desigualdade, de menor eficácia social e de desperdício de oportunidades de impacto, e ajudam a configurar a política para uma operacionalização mais justa, eficaz, eficiente e confiável, e menos capturada por particulares e instrumentalizada por políticos.

Portugal tem capital político e humano para fazer melhor. Que se planeiem subvenções e políticas públicas de energia, ambiente e sustentabilidade de forma que todos os que delas necessitam ou a quem elas se destinam possam realmente beneficiar. Um país rico em recursos naturais, como o nosso, não merece menos.

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