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Miguel Herdade Gestor do setor social
23.07.2024

Chega de bebés subsidiodependentes

Os bebés filhos de quem não recebe subsídios são muito mais virtuosos que os outros. Pelo seu mérito e condição de nascimento, merecem ser beneficiários deste investimento público na sua educação desde a mais tenra idade.

A subsidiodependência é um fenómeno trágico. Não há nada mais irritante e injusto do que ver pessoas oportunistas e preguiçosas a usar e abusar do dinheiro dos contribuintes. Pior ainda, é que esses trapaceiros são seres pequeninos, barulhentos, ranhosos, incapazes de trabalhar e que, além de não pagarem impostos, ainda conspurcam o dinheiro público com os seus pequenos dedos gordinhos e anafados: os bebés.

Com o objetivo de acabar com esta situação de parasitismo social infantil, o Governo Regional dos Açores - que administra a região mais pobre do país - decidiu preparar um projeto piloto. Esta iniciativa quer que as crianças entre os 0 e os 3 anos, cujos pais tenham emprego possam ter acesso prioritário à creche pública. Uma medida de elementar justiça, uma vez que quem trabalha não pode, evidentemente, ficar em casa com os bebés e deve ter prioridade no acesso a um local físico onde pode depositar os seus descendentes enquanto trabalha.

Estes bebés, muito mais virtuosos que os outros, merecem pelo seu mérito e condição de nascimento ser beneficiários deste investimento público na sua educação desde a mais tenra idade. Por oposição, os desempregados e quem recebe prestações sociais têm tempo livre para tomar conta da sua prole de putativos mini-abusadores do dinheiro público.

A resolução, apresentada pelo Chega, teve o apoio de dois partidos que têm a palavra "social" no nome (PSD e CDS-PP), de um partido que defende que o mérito é hereditário (o Partido Monárquico) e a abstenção de um partido que defende, acho eu, que o mérito não é hereditário (a IL).

Até aqui está tudo certo, mas apenas se olharmos da perspetiva de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem, e que os bebés que nasceram em famílias mais ricas merecem mais apoio do Estado do que os outros.

Quanto à primeira premissa, gostava de notar que – salvo alguns padres e freiras com quem me cruzei na vida – nunca conheci ninguém que gostasse de ser pobre. Muito menos alguém que, podendo escolher, tenha optado pela pobreza. A ideia de que ser pobre ou estar desempregado é uma escolha feita em total liberdade de ação só cabe na cabeça de quem acha que os desempregados não trabalham porque não querem, e que alguém prefere ser pobre para sacar subsídios ao estado.

Para essa gente subsidiofóbica tenho más notícias:As pessoas mais ricas recebem muito mais subsídios do que as pobres. De acordo com a OCDE, em Portugal, na década passada, por cada €10 que o Estado distribuía em subsídios, cerca de €4 iam para os 20% mais ricos do país, e apenas €1,5 para os 20% mais pobres. E reparem que estes números dizem respeito a transferências de dinheiro a pessoas em idade ativa,
pelo que evidentemente não incluem as reformas dos pensionistas.

Temos, portanto, um Estado "Social" que apoia mais os ricos do que os pobres, potencialmente aumentando as desigualdades que esse Estado existe para combater. Como se isso não bastasse, decidiu-se agora penalizar ainda mais os mais fracos da sociedade: não só violenta quem cai no suplício do desemprego, como ainda se pune estes pequenos rabinos das ilhas que se aproveitam dos nossos impostos para ir à creche.

Só que é precisamente às crianças nascidas em contextos desfavorecidos que frequentar a creche mais traz benefícios. Tipicamente são estas crianças que têm situações de maior privação material, ou seja, casas degradadas, stress provocado pela pobreza e, claro, a fome. Como bem lembra aSusana Peralta no seu excelente artigo no Público, citando um estudo que fez com a Mariana Esteves, o Pedro Freitas, o Bruno P. Carvalho e comigo, mais do que1 em cada 10 crianças Açorianas sentiram fome e a família não tinha dinheiro para lhes dar de comer. A creche pode mesmo ser um dos pouco sítios onde esta necessidade é suprimida.

Além disso, é importante notar que Portugal tem um problema de falta de abrangência da rede de creches (cobre apenas 50% das necessidades), e que as crianças nascidas em famílias mais ricas têm mais acesso à creche e ao pré-escolar do que as mais pobres.

O pior é que, ao contrário do que muita gente acha, os primeiros anos de vida são mesmo os mais importantes para o nosso desenvolvimento motor, cognitivo e emocional. As crianças que frequentam a creche não só têm melhores resultados no seu percurso académico, como esse efeito é maior nas crianças mais pobres. Aliás, como demonstrou o prémio Nobel da Economia, James Heckman, cada euro investido
em educação dos 0 aos 3 anos tem um retorno muito mais elevado do que em fases posteriores, ou seja, vale muito mais a pena investir em creches do que no secundário ou até no ensino superior.

É também por isso que os dados nos dizem que a parte mais substancial do fosso entre ricos e pobres já existe antes do 1.º ano de escolaridade, pelo que, ao longo do percurso escolar, estamos a tentar remediar (ou a aprofundar) um dano que já lá está antes mesmo de uma criança entrar na escola. A OCDE estima que as crianças nascidas em contextos desfavorecidos quando chegam aos5 anos de idade já têm entre 8 a 20 meses de atraso em relação aos seus colegas.

Ao contrário da enormidade que fizeram nos Açores, andaram bem o PSD e o CDS no continente ao estipular no seu programa eleitoral que as creches e o pré-escolar deviam sair da tutela do Ministério do Trabalho e Segurança Social (onde nunca deviam ter estado), e passar para o Ministério da Educação, demonstrando assim que a educação nos primeiros anos é, em primeiro lugar, uma aposta na educação e não uma resposta para os adultos participarem no mercado de trabalho.

Fazer o contrário é olhar para as creches como subsídio para os problemas dos adultos, e não como a melhor oportunidade de investir no futuro dos bebés mais pobres.

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