Uma ferida que dói mas não se sente
A dificuldade que o Orçamento encontrará é, mesmo, o seu equilíbrio.
Não, não vos vou falar de amor. A não ser que gostem muito do Orçamento do Estado. Ele chega esta semana à Assembleia e traz consigo uma ferida que dói mas não se sente. É evidente que esse exercício cair a apenas dois dias das eleições autárquicas é muito conveniente, conferindo aos partidos da Aliança Democrática uma vantagem estratégica para os últimos momentos antes dos portugueses irem às urnas. Mas não é isso que dói, mesmo a um deputado da Oposição.
O problema está mesmo no próprio Orçamento. Não na sua viabilização, que parece garantida. O Governo anunciou que este será um Orçamento depenado, indo ao encontro da exigência do PS de não aproveitar esta ocasião para viabilizar as suas propostas retrógradas em matéria de leis laborais ou da organização do sistema de saúde. Já André Ventura diz que tem um “compromisso” com o Governo em relação ao Orçamento, nomeadamente na redução de IRS, o que já foi também confirmado por Montenegro. Com um partido ou com outro, não será por falta de estabilidade que as más políticas deste Governo fracassarão.
A dificuldade que o Orçamento encontrará é, mesmo, o seu equilíbrio. O Conselho de Finanças Públicas, a entidade independente a quem cabe, por lei, validar as previsões orçamentais, estimou, no passado dia 22 setembro, um cenário orçamental onde o défice em 2026 é de 0,6%. Também a Comissão Europeia previu um défice de 0,6% em maio, tendo também o Banco de Portugal antevisto em junho um défice de 1,3% e a OCDE de 0,3% em junho. De todas as previsões, apenas a mais antiga, do FMI, acha que o Governo manterá um excedente em 2026.
Isso não é uma bagatela, apesar da espantosa redução da dívida pública a que temos assistido nos últimos 10 anos. Os mercados de dívida soberana continuam nervosos e Portugal não só foi dos países com maior desvio face às regras orçamentais europeias, como também se antecipa que essa tendência se agrave durante o ano de 2026. Na verdade, de abril para setembro, o Governo já aumentou a previsão da despesa líquida de 5,3 para 6,2%, bastante acima dos 5,1% acordados com a Comissão. A credibilidade que nos custou tanto a ganhar pode estar, de facto, em causa.
Isso não é, todavia, o final da história. Este cenário não inclui ainda nem a descida acordada entre AD e CHEGA no IRS (111 milhões) nem o impacto do corte no IRC (420 milhões em 2026 e mais nos anos seguintes). Muito menos traduz a redução do IRS para a esmagadora maioria dos senhorios de 25 para 10%, cujo impacto orçamental ainda está por estimar. Se em 2023 com a taxa de 25%, este imposto rendeu 743 milhões, uma taxa de 10% poderia custar até 445 milhões. A isto devemos somar o reforço da dedução das rendas e a atualização dos escalões do IMT. Do lado da arrecadação de receita, a única novidade parece ser o aumento da taxa de ISP, tal como já haviam feito no início de 2025, reduzindo assim os descontos de 11,7 e 13,2 cêntimos que o PS havia introduzido no preço do gasóleo e da gasolina, respetivamente.
Estas medidas extra, com um valor seguramente superior a mil milhões de euros, contam para efeitos de Bruxelas como despesa fiscal. Competem com outras despesas, por isso, não só diretamente para o cálculo do saldo orçamental como também para o cumprimento das regras europeias. Em teoria, todas as reduções de impostos parecem boas.
Na prática, significam mesmo menos recursos para construir casas e creches, reabilitar escolas e hospitais e pagar melhor aos médicos e professores que tanta falta nos fazem. Não será de admirar que a execução do investimento público esteja ao nível mais baixo desde 2014 e que dois terços das cativações iniciais estejam ainda por utilizar.
Esta realidade, tão apreensível nas contas públicas como na nossa economia caseira, parece não estar ao alcance do nosso Ministro das Finanças. Numa conferência do CAAD, Miranda Sarmento disse que “as alterações fiscais que têm de ir ao Parlamento devem seguir processos legislativos próprios para que o Parlamento possa discutir as opções fiscais e não misturadas no meio do Orçamento”, acrescentando que este deve ser “apenas a tradução, do lado da receita e da despesa, daquilo que são as opções políticas que o Governo e o Parlamento tomam”.
Esta é uma visão que, para qualquer cidadão, deve ser preocupante. Porque ou o Orçamento estabelece, ele próprio, opções e estratégias para a receita e despesa, ou as cifras governam-nos sem rei nem roque. Porque tomar opções sobre a receita antes do Orçamento, sem saber o espaço que ele nos dá para fazer essa e/ou outras escolhas, é estar a hipotecar, antecipadamente, quaisquer outras escolhas. Fazê-lo com reduções de impostos é a consagração de uma visão de sociedade que faz desta jogada de Miranda Sarmento não tanto ingénua quanto profundamente ideológica.
Dito de outra forma, é uma gestão orçamental à Camões. A irresponsabilidade orçamental deste Governo cria feridas que doem mas que, no momento em que são decididas, não se sentem. Seguramente deixará, no país, um contentamento descontente, de quem arde dinheiro sem ver acontecer. Enfim, talvez seja amor. Resta saber ao quê. Ao país e ao futuro não é de certeza.
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