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Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
02.09.2025

Quando falta gente, o Estado falta

Por todo o Estado, há sinais de escassez gritante de pessoal. Faltam dois mil guardas prisionais. Já na carreira de enfermaria faltam 20 mil profissionais. A isto poderíamos somar a falta de médicos no SNS.

Faltam poucos dias para o início das aulas e 140 mil alunos ainda não têm professor. É uma redução de 30% face aos números estimados para o ano passado, muito longe da meta que o Governo tinha definido de uma redução de 90% no número de alunos sem professor. Depois do rol de medidas adotadas pelo Governo para atenuar esta escassez de profissionais, incluindo a retirada de até 300 professores das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e de até 500 professores dos serviços centrais do Ministério da Educação, estes dados são meramente ilustrativos da dificuldade crónica de recrutamento que o Estado enfrenta. 

E a escola pública não é caso único. Por todo o Estado, há sinais de escassez gritante de pessoal. Faltam dois mil guardas prisionais, num país que teve recentemente fugas significativas das suas cadeias. Já na carreira de enfermagem, faltam cerca de 20 mil profissionais, dez vezes mais. A isto poderíamos somar a falta de médicos no SNS, tendo o Governo sido obrigado a limitar a contratação de tarefeiros aos médicos que também prestam serviço público. Uma pesquisa por outras profissões públicas permite encontrar notícias semelhantes: 266 conservadores e 1981 oficiais de registo, 1800 oficiais de justiça, falta de inspetores na Autoridade Tributária, IGAS e ASAE e, claro, o triste caso do INEM onde a falta de pessoal levou o número de chamadas não-atendidas a aumentar dez vezes entre 2021 e 2024. Já para não falar da crónica falta de pessoal na PSP, GNR e forças armadas que coloca em causa uma das mais primordiais funções do Estado. 

A falta de atratividade de uma carreira pública torna-se patente não só na paulatina redução no número de candidatos em várias destas profissões, como também no facto de muitos desistirem a meio das formações para início de funções, como se verificou com a PSP ou os técnicos de emergência pré-hospitalar. Isso é especialmente grave num contexto de progressivo envelhecimento, em que o número de saídas por reforma subiu de 6.482 para 18.671 no prazo de uma década. A isto soma-se cerca de 7% dos funcionários públicos que, todos os anos, saem definitivamente por outros motivos. Substituir estas pessoas custa tempo e recursos, ainda para mais quando a autorização de recrutamento tarda a vir (ou como no caso do SIRESP, nunca vem).  

Perante uma situação tão dramática em matéria de recursos humanos, não admira que tantos serviços públicos estejam a falhar na qualidade que todos exigimos deles. O problema é que muitos já começaram mesmo a desistir da provisão pública desses serviços, acreditando que estes já não têm emenda. É aí que nasce um desfasamento entre os impostos que pagamos e os serviços que recebemos e a tentação de ora privatizá-los ora baixar impostos ou, num salto difícil de alcançar para as contas públicas, ambos ao mesmo tempo. 

Recentemente, no seu discurso de rentrée política, a nova líder da Iniciativa Liberal decidiu cavalgar nesse tema, sugerindo despedir os funcionários públicos que “estão a mais”. É certo que todos conhecemos exemplos dessa figura que arrasta os pés refastelado na segurança de um “emprego para a vida”. Os próprios servidores do Estado devem ser os primeiros a incomodarem-se com o colega que dá mau nome ao serviço e à classe. Todavia, é importante não tomarmos a árvore por a floresta. É fundamental não nos iludirmos achando que, até nos mais “flexíveis” mercados de trabalho, o setor privado é eficiente a eliminar estas “ineficiências”. Seria bom, aliás, que primeiro nos lembrássemos que estamos a falar de pessoas e que a sua produtividade não é fixa nem pré-determinada. Ter outras funções ou outra organização do trabalho poderão ser fatores essenciais de motivação desse ser humano. 

A verdade é que, olhando para o panorama global, Portugal dificilmente pode ser descrito como tendo funcionários públicos “a mais”. Nos últimos 10 anos, houve um aumento de 106 mil pessoas com emprego público. Essa variação (+16%) pode assustar algumas mentes mais inquietas mas, não só está abaixo do crescimento do emprego no setor privado (+21%), como concentra-se inteiramente nos setores da saúde, educação e poder local. Portugal é mesmo um dos países da União Europeia onde há menos trabalhadores no Estado, em percentagem do total das pessoas empregadas. 

Se o propósito não é apenas regurgitar uma cartilha ideológica estafada mas, sim, fornecer melhores serviços aos cidadãos e empresas, promovendo assim a prosperidade e a qualidade de vida, podemos traçar um roteiro alternativo ao de Mariana Leitão. Podemos concluir a revisão e valorização das carreiras, adotar concursos mais regulares e ágeis e dotar os gestores públicos de previsibilidade na autorização de contratação, como sucedeu nos últimos suspiros do Governo de António Costa. A avaliação, reforçada com o novo SIADAP, é uma parte indispensável deste esforço, devendo permitir progressões que mantenham o Estado competitivo com quem tenta ficar com o seu melhor talento. Uma certeza poderemos, no entanto, ter: entre a falta de pessoal que já há e o que virá fruto das transições digitais, climáticas e demográficas, se o nosso objetivo for mesmo servir melhor os cidadãos, a maior riqueza do Estado não está nas paredes dos ministérios. Está nas pessoas que fazem o serviço público acontecer. 

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