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Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
26.08.2025

Floresta: o estado de negação

Governo perdeu tempo a inventar uma alternativa à situação de calamidade, prevista na Lei de Bases da Proteção Civil. Nos apoios à agricultura, impôs um limite de 10 mil euros que, não só é escasso, como é inferior ao que anteriores Governos PS aprovaram. Veremos como é feita a estabilização de solos.

Todos os anos o país arde. Todos os anos repetimos a honra aos combatentes, a indignação com a falta de resiliência da floresta e as promessas de que desta vez será diferente. Todos os anos redescobrimos o interior e a ameaça da crise climáticas. E todos os anos a tragédia repete-se. 

Mas os anos não são todos iguais. Até 23 de agosto, tinham ardido quase 250 mil hectares, tornando-se este no pior ano da década em área ardida, superando até o mesmo período no fatídico ano de 2017. Esta evolução contrasta com a redução na área ardida dos últimos anos, que chegou a 60% no período de governação do PS. Contrasta também com o número modesto de ignições: o ano de 2025 tem o 5.º valor mais reduzido em número de incêndios. Ou seja, tivemos este ano incêndios muito maiores: a área ardida média por incêndio, que na última década tinha rondado os 8 hectares, subiu este ano para perto dos 37. 

É evidente que há muitas explicações para o sucedido, desde o abandono estrutural da floresta a falhas na organização do combate. O Governo, desaparecido para banhos e para a Festa do Pontal, desculpa-se com a severidade meteorológica – 24 dias como não há registo, segundo Montenegro. Hoje é possível testar essa hipótese com recurso à taxa diária de severidade do IPMA. Baseando-se nisso e no histórico, pode-se construir uma “área ardida ponderada” para estimar o que se esperaria ardesse com estas condições. As conclusões são claras: não só 2025 está aquém do que sentimos em 2022, quando grande parte do país estava em seca severa ou extrema. Pior, enquanto nesse ano, ardeu menos 28% do que seria a área expectável, 2025 já supera em 24% a sua “área ardida ponderada”.  

O primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo. Este ano correu mal e uma parte foi falta de preparação. Não é indiferente que a Proteção Civil tenha seis postos de comando por nomear. A ausência dos meios aéreos contratados, como denunciei ainda em julho, não se revelou “irrelevante”, como afirmava a Ministra. Não terá ajudado que, semanas antes, o Governo tenha deixado os corpos de bombeiros sem dinheiro para pagar salários. Já para não falar do SIRESP, deixado desde março 2024 sem presidente e sem poder contratar pessoal.  

O desenrolar da época de incêndios não foi melhor. O Governo atrasou o acionar do mecanismo europeu de proteção civil, diminuindo o número de meios aéreos a reforçar o dispositivo português. No que apenas pode ser explicado por teimosia em não dar razão ao PS, recusou-se a decretar estado de contingência, o que ativaria os planos municipais e sub-regionais de emergência, e não reuniu a Comissão Nacional de Proteção Civil, que poderia ter mobilizado mais maquinaria de arrasto, meios de transporte de apoio à evacuação de população ou até o reforço de meios das Forças Armadas. Não, o Governo não deu “o máximo”. Em vez do estado de contingência, tivemos um Governo em estado de negação. 

Mesmo agora no rescaldo dos incêndios, o Governo perdeu tempo a inventar uma alternativa à situação de calamidade, prevista desde 2006 na Lei de Bases da Proteção Civil. Nos apoios à agricultura, impôs um limite de 10 mil euros que, não só é escasso, como é inferior ao que anteriores Governos PS aprovaram. Veremos, ainda, como é feita a estabilização de solos ou a regeneração dos terrenos florestais. 

Se há desafios importantes durante e após os incêndios, o segredo de uma floresta mais segura está na prevenção. Parte da prevenção faz-se todos os anos, através da limpeza dos terrenos. Além de caro e difícil arranjar quem faça, quando há uma situação de incumprimento, as Câmaras têm dificuldade em se substituírem aos donos dos terrenos para o fazer. Afinal de contas, a raiz do problema está na fragmentação e estagnação da propriedade rústica. Justamente nas zonas onde há maior risco de incêndio verificam-se mais terrenos de pequeníssima dimensão - a área média da propriedade rústica na região Centro são 0,6 ha, com heranças indivisas em 30% dos terrenos e, portanto, sem perspetivas de produtividade. Nalguns casos, nem se sabe quem são os donos do quê. 

A reforma da floresta é, sem dúvida, a peça mais importante deste puzzle. Mas ela não é (nem nunca será) rápida como o fogo. Ela é lenta como um tronco que cresce por longas e diversas estações. Sucessivos governos têm apresentado vistosas iniciativas de reforma da floresta – este não será diferente. E bem, porque cada vez que tentamos de novo, ganhamos a coesão das ideias organizadas e o ânimo ou ilusão de que “agora é que é”. Estes planos raramente reinventam a roda. O jornal Público fez as comparações e o Governo de Montenegro limitou-se a pegar no plano para a floresta de António Costa e dar-lhe um novo embrulho. Mas ajustadas as contas do argumentário político, se fizermos isto bem, os embrulhos não têm de ser um problema.  

Só seremos bem-sucedidos a transformar a paisagem e a estrutura produtiva da floresta se conseguirmos que a nossa ação perdure vários ciclos políticos. Não quer dizer que não haja espaço para ideias novas (já vamos falar delas) mas qualquer objetivo nesta área exige consistência na sua aplicação. Não tem sido o caso. Não me refiro só à reforma da propriedade rústica, deixada pelo PS na pasta de transição e abandonada por este Governo. O Banco de Terras, que entrou em vigor em dezembro de 2023, está por implementar. Os apoios à limpeza de terrenos, criados em 2023 como Vale Floresta, foram interrompidos em 2024 e relançados em junho de 2025 com novo nome. Consta que não tem projetos aprovados. 

Os fundos europeus podiam revelar-se uma oportunidade para a transformação da floresta. Contudo, desde 2023 que não há novos avisos do PEPAC dirigidos ao investimento em floresta e, em outubro 2024, a AD reduziu em 44% (120 milhões) os fundos programados para a floresta nesse quadro. Já no PRR, o cenário é dramático. Das 62 Áreas Integradas de Gestão da Paisagem aprovadas, em abril deste ano apenas 12 estavam contratadas. Nos Condomínios de Aldeia, em fevereiro estavam apenas em execução 139 das 800 aldeias previstas. O Programa Emparcelar para Ordenar tem 59 hectares aprovados, longe dos 2 mil contratados com Bruxelas. 

Qualquer novo impulso na reforma da floresta deve começar por pôr em marcha estas iniciativas que o último Governo do PS deixou. Afinal, não se conhecem divergências políticas quanto à sua orientação para a floresta. O drama que vivemos deveria, porém, ser razão para superarmos alguns dos habituais bloqueios. Temos de assegurar rendibilidade a espécies autóctones, apoiando anual e diretamente a produção e remunerando os serviços de ecossistema. Há que rever as regras de corte e melhorar a rastreabilidade da madeira, combatendo a plantação ilegal de eucalipto. Devemos combater espécies invasoras como a acácia, especialmente nesta fase crítica de regeneração. Além do apoio financeiro à limpeza de terrenos, devemos voltar a investir no fogo controlado, na pastorícia e na capacidade do ICNF, bombeiros e autarquias em executar operações de gestão de combustível. 

Nenhuma destas ideias transformará a floresta de um dia para o outro. No próximo ano, voltará a arder e, com o previsível agravamento das alterações climáticas, os incêndios tornar-se-ão cada vez mais severos. A floresta arde com o fogo, mas o que a devasta realmente é o esquecimento político. Se queremos voltar a inverter essa tendência, como fizemos no passado recente, vamos precisar de mais do que novos embrulhos e boas desculpas. Vamos precisar de compromisso e foco. 

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