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Miguel Costa Matos Economista e deputado do PS
22.07.2025

Compram-se: histórias da carochinha

Já sabíamos que vivemos numa era de ciclos mediáticos muito curtos. Isso já era o caso com a televisão e passou a sê-lo mais ainda com as redes sociais. Todavia, estes meios deveriam permitir-nos confrontar os políticos com o que disseram ou propuseram no passado. Como se diz na gíria, "a internet não esquece".

Esta semana foi um chorrilho de "novidades". Na quarta-feira, o Parlamento fez as últimas votações antes do verão, aprovando adescida do IRS e a nova lei dos estrangeiros. Na quinta-feira, o debate do Estado da Nação trouxe consigo três tentativas de anúncio: sobre a descida do IRC, o bónus para as pensões e, ainda, os apoios para os professores deslocados. Um olhar acrítico chamaria a esta sucessão de eventos a primeira boa semana do Governo em algum tempo, sobretudo depois do monumental fracasso que representa a crise do INEM. Como tudo, porém, isso depende de como se conta a história. 

Na verdade, esta semana representou uma nova fase na vida política do nosso país – a aliança sistemática entre a AD e o CHEGA. Há muito que os sinais estavam aí. O PSD escolheu, como estratégia para esvaziar e amarrar a extrema-direita, adotar as mesmas prioridades (e.g. imigração e segurança), o mesmo registo e, em alguns casos como a Lei da Nacionalidade, as mesmas propostas que o CHEGA. Luís Montenegro pode bem dizer que privilegia pontualmente os partidos que estão mais próximos do seu programa de Governo, mas a boca dos seus generais foge para a verdade. Hugo Soares já tinha alertado para nos "habituarmos" e Carlos Abreu Amorim surpreendeu, desmentindo o Primeiro-Ministro sobre a existência de um "acordo de princípios" com o partido de André Ventura. O que os últimos dias confirmaram foi que este acordo não se limita já apenas a áreas de proximidade programática, mas também à esfera fiscal e orçamental, firmando um compromisso sobre como reduzir o IRS no Orçamento de Estado do próximo ano. 

Qualquer pessoa que veja os títulos dos jornais da última semana não dará conta desta mudança de paradigma, ainda para mais quando contrasta com o sonoro "não é não" repetido por Montenegro na campanha eleitoral. Também não serão recordados de que o apoio para professores deslocados, agora anunciado com pompa e circunstância, foi chumbado pela AD há uns meros 4 meses na Assembleia da República. Nenhum caso será feito de como o acordo para o IRS teve como contrapartida chumbar a continuidade da devolução das propinas – habilmente colocada na gaveta sem revogação. Assim se deixa que um Governo passe a sua mensagem sem o escrutínio e o contraditório que uma imprensa livre e plural deveria assegurar. 

Já sabíamos que vivemos numa era de ciclos mediáticos muito curtos. Isso já era o caso com a televisão e passou a sê-lo mais ainda com as redes sociais. Todavia, estes meios deveriam permitir-nos confrontar os políticos com o que disseram ou propuseram no passado. Como se diz na gíria, "a internet não esquece". É, por isso, surpreendente que o valor da palavra continue a cair vertiginosamente. Perante a proposta do Governo de limitar o reagrupamento familiar, foi o Primeiro-Ministro confrontado com as suas próprias declarações 2 anos antes, no Congresso do PSD em Almada, a defender "atrair os agregados familiares como um todo – e não apenas os progenitores masculinos desses agregados familiares"? Ou, por acaso, teve Montenegro que justificar a clara contradição entre as posições que assumiu sobre a lei da nacionalidade, de 2006 para os dias de hoje? Falo-vos apenas de 2 exemplos flagrantes. 

Estamos decididamente numa era de pós-verdade. Isto é, claro, apenas uma face da superficialidade com que a coisa pública é tratada entre formadores de opinião. Alguém perguntou por que motivo os retroativos da descida do IRS se concentram nas vésperas de eleições e não no resto de 2025? Já alguém sabe qual o motivo do atraso no concurso dos helicópteros do INEM ou no seu plano de refundação? E terá sido realmente posta à prova a ideia de que a nossa "robusta" situação orçamental não permite fazer aumentos permanentes das pensões mas apenas bónus extraordinários de natureza anual? 

Este adormecimento informativo é o caldo perfeito para que alguns políticos oportunistas façam vingar um período de imobilismo mascarado de reformismo. Como dizia Lampedusa, "tudo tem de mudar para que tudo fique na mesma". Isto não representa apenas um dano para as perspetivas de desenvolvimento do país. Representa uma ameaça para a credibilidade do próprio projeto democrático. Afinal, quando nada é questionado, tudo pode ser questionado.  

Na presença de um vírus mortífero para as nossas democracias e o seu tecido social, como é a extrema-direita, não nos podemos limitar a defender o direito a ser informado, combatendo todas as formas de desinformação. Devemos defender o dever de informar. Queria, por isso, terminar com um reconhecimento aos jornalistas que todos os dias tentam questionar, investigar e fazer diferente. São muitos e são bons. Nesta semana em que a justiça chumbou a recuperação da Trust in News, é devida ainda uma palavra especial aos jornalistas da Visão, Exame, Jornal de Letras e Caras pelo trabalho importante que fazem pelo nosso país. 

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