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Marta Fonseca Ferreira Advogada
28.04.2025

O pendente furto do coração

No antigo Tribunal de Sintra, decorria um caso peculiar naquela manhã de outubro. A Dr.ª Sofia Mendonça, Juíza do Tribunal Judicial de Sintra, pensava já ter visto tudo o que o sistema judicial português tinha para oferecer, mas aquele processo fazia-a duvidar. 

No antigo Tribunal de Sintra, onde as paredes de pedra evocavam uma atmosfera quase medieval e as janelas altas deixavam entrar uma luz romântica que parecia deslocada para um local de justiça, decorria um caso peculiar naquela manhã de outubro. 

A Dr.ª Sofia Mendonça, Juíza do Tribunal Judicial de Sintra, olhava com interesse para a folha que tinha à sua frente. Formada há mais de vinte anos, pensava já ter visto tudo o que o sistema judicial português tinha para oferecer, mas aquele processo fazia-a duvidar. 

"Processo nº 789/2023, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra", anunciou o funcionário judicial, enquanto ajustava os óculos na ponta do nariz. "Acusação de furto contra Tomás Luís Ramires." 

O arguido, um homem de trinta e poucos anos, cabelo escuro ondulado e um sorriso nervoso mas encantador, ajustou a gravata azul-escura – claramente emprestada e mal ajustada ao seu pescoço. Ao seu lado, sentou-se o seu defensor oficioso, o Dr. Pedro Leitão, que folheava os documentos com uma expressão de diversão mal contida. 

A Dr.ª Sofia Mendonça ajustou a beca e olhou diretamente para o arguido. 

"Senhor Tomás Ramires, está acusado de furto de propriedade pessoal da Srª. Margarida Costa. Como se declara?" 

Tomás levantou-se, as mãos ligeiramente trémulas, mas o olhar firme. 

"Culpado, Meritíssima... mas com atenuantes extraordinárias." 

Um leve murmúrio percorreu a sala. A juíza, que já tinha lido o processo, manteve uma expressão neutra, mas havia um quase impercetível erguer do canto dos lábios. 

"Prossiga, então." 

Tomás pigarreou e olhou brevemente para a assistente de loja que o tinha denunciado, sentada na primeira fila. 
"Meritíssima, é verdade que no dia 14 de agosto deste ano, retirei da Joalharia Brilhos de Sintra um pendente em forma de chave antiga, avaliado em 120 euros. Mas não o fiz para mim, nem para o vender. Fi-lo pelo amor."

O procurador do Ministério Público soltou um suspiro audível de impaciência, mas a juíza fez um gesto para que o arguido continuasse. 

"Vê, Meritíssima, eu trabalho como guia no Palácio da Pena, aqui em Sintra. Há seis meses, uma senhora idosa visitou o palácio com a sua neta, a Carolina. A avó contou-me que tinha perdido o marido recentemente e esta viagem a Sintra era uma forma de honrar a memória dele, pois tinham-se conhecido aqui, há mais de cinquenta anos. Enquanto guiava o grupo, notei que a Carolina... bem, Meritíssima, ela era a pessoa mais fascinante que já vi. Não só pela sua beleza, mas pela forma como os seus olhos brilhavam ao ouvir cada história, cada detalhe arquitetónico que eu mencionava." 

A juíza olhou para a assistente da sala, que anotava tudo com zelo excessivo, claramente tão interessada na história quanto a própria juíza. 

"Ao final da visita," continuou Tomás, "descobri que a Carolina era arqueóloga, especializada no período romântico. Trocámos contactos profissionais e, ao longo dos meses seguintes, fui-lhe enviando informações sobre o palácio, fotografias de detalhes arquitetónicos, artigos históricos... Tornámo-nos amigos, depois confidentes, e eu, bem... apaixonei-me perdidamente." 

"E o pendente, Senhor Ramires?" inquiriu a juíza, embora o seu tom fosse mais suave do que o protocolo exigia. 
"A Carolina tinha-me contado que a sua avó guardava uma pequena caixa de joias que o avô lhe oferecera no seu primeiro encontro em Sintra, mas que perdera a chave original há décadas. Descreveu-a em detalhe – uma chave antiga, com um desenho de uma flor-de-lis na ponta. A caixa estava fechada desde a morte do avô, e a avó acreditava que continha alguma mensagem especial que ele queria que ela só descobrisse depois de partir." 
Tomás olhou para o chão, visivelmente emocionado. 

"Um dia, passando pela joalharia, vi o pendente na montra. Era idêntico à descrição da chave perdida. Pensei que poderia ser um presente perfeito, simbólico... Mas nessa semana tinha pago a renda e a mensalidade do mestrado em História que estou a tirar. Não tinha como pagar e aquela era a última peça. Tentei pedir para reservarem, mas disseram que não era possível." 

"Então decidiu furtá-lo," concluiu a juíza. 

"Sim, Meritíssima. Sei que não justifica o que fiz. Entrei na loja, aproveitei um momento de distração da funcionária, e levei o pendente. Apenas percebi a gravidade do que tinha feito quando já estava na rua. Estava a caminho da esquadra para me entregar quando a polícia me abordou – a assistente tinha visto tudo através do espelho de segurança." 

A juíza olhou para a assistente de loja, uma senhora de meia-idade de expressão severa, mas que agora parecia visivelmente comovida. 

"E o que aconteceu à tal chave, Senhor Ramires?" 

"Ficou com a polícia, como prova do crime. A Carolina nunca chegou a recebê-la."

Houve uma breve pausa. A juíza ajustou os óculos e folheou alguns documentos. 

"Há mais alguém que queira pronunciar-se sobre este caso?" 

Para surpresa de todos, uma jovem mulher de cabelos castanhos e olhos vivos levantou-se do fundo da sala. 
"Eu gostaria, Meritíssima. Sou Carolina Costa, a pessoa para quem o pendente se destinava." 

Tomás virou-se rapidamente, o rosto a alternar entre surpresa e embaraço. 

"Prossiga." autorizou a juíza. 

"Quando o Tomás foi detido, a polícia contactou-me como parte da investigação. Foi assim que soube o que ele tinha feito e porquê. Fiquei... Bem, inicialmente fiquei chocada. Mas depois compreendi o gesto desesperado de alguém que queria ajudar a concretizar um desejo muito antigo da minha avó." 

Carolina aproximou-se um pouco mais. 

"Visitei a minha avó e contei-lhe toda a história. Para minha surpresa, ela riu-se como não a via rir há anos. Disse-me que o meu avô também tinha feito uma loucura por ela, nos primeiros tempos do seu namoro – aparentemente, 'roubou' uma rosa do jardim do Palácio de Queluz para lhe oferecer, e quase foi apanhado por um guarda." 

Um sorriso genuíno iluminou o rosto da juíza. 

"Meritíssima," continuou Carolina, "não quero que o Tomás seja condenado por um erro que, embora condenável, foi feito com as mais puras intenções. Já paguei à joalharia o valor do pendente e a gerente retirou a queixa, como comprova este documento." 

Passou um papel à oficial de justiça, que o entregou à juíza. 

A Dr.ª Sofia Mendonça examinou o documento com atenção e depois olhou para o procurador do Ministério Público, que acenou afirmativamente. 

"Tendo em consideração a retirada da queixa pela parte ofendida, o arrependimento sincero do arguido, e o facto de não ter antecedentes criminais, o Ministério Público não se opõe ao arquivamento do processo, mediante o pagamento de uma multa simbólica a favor de uma instituição de solidariedade social," declarou o procurador. 
A juíza considerou por um momento, depois anunciou: 

"Face à posição das partes e atendendo a todas as circunstâncias aqui relatadas, determino o arquivamento do processo, com a condição de que o Senhor Ramires cumpra cinquenta horas de serviço comunitário no Museu Arqueológico de Sintra, onde poderá utilizar os seus conhecimentos históricos de forma construtiva." 

Tomás assentiu, visivelmente aliviado. 

"Por fim," acrescentou a juíza, com um brilho nos olhos, "e excedendo ligeiramente as minhas competências jurisdicionais, gostaria de saber se a chave acabou por abrir a misteriosa caixa da sua avó?" 
Carolina sorriu. 

"Sim, Meritíssima. Dentro da caixa estava o primeiro bilhete que o meu avô escreveu à minha avó, com um poema de Fernando Pessoa, e um pequeno pêndulo de cristal que, segundo a tradição local, apontaria sempre na direção do verdadeiro amor." 

"E funcionou?" perguntou a juíza, ignorando o olhar reprovador do procurador pela informalidade. 
Carolina olhou para Tomás, sorrindo. 

"Quando o segurei, apontou diretamente para o Tomás, apesar de ele estar no lado oposto da sala na esquadra. A minha avó achou que era um sinal inequívoco." 

A sala encheu-se de suspiros audíveis  e alguns aplausos espontâneos, que a juíza permitiu por alguns segundos antes de restaurar a ordem. 

"Está arquivado o processo. E, Senhor Ramires," acrescentou, inclinando-se ligeiramente, "da próxima vez que quiser impressionar uma senhora, talvez seja melhor optar por meios menos... judiciais." 

"Sim, Meritíssima," respondeu Tomás, com um sorriso genuíno. "Lição bem aprendida."

Quando todos se levantaram para sair, a juíza chamou discretamente o oficial de justiça. 

"Por curiosidade, aquela famosa caixa de joias da avó está na sala?" 

"Está, Meritíssima. A Doutora Carolina trouxe-a para mostrar como prova material da sua declaração." 
"Ótimo," respondeu a juíza com um sorriso. "Peça-lhe que nos mostre o tal pêndulo antes de saírem. Puramente por interesse... jurídico, claro." 

"Claro, Meritíssima," respondeu o oficial, com um sorriso cúmplice. 

No Palácio da Pena, um ano depois, entre os recantos românticos que D. Fernando II havia concebido, Tomás conduzia o seu último tour como guia antes de assumir o cargo de curador assistente no museu local. No seu grupo, uma juíza reformada escutava atentamente, enquanto o historiador explicava como as chaves antigas por vezes abriam muito mais do que simples portas – às vezes, abriam corações e destinos inteiros. 

E no dedo de Carolina, agora sua noiva, brilhava um anel com uma pequena chave gravada – comprada legitimamente, desta vez, e com recibo para provar. 

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