O Cachecol Vermelho
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
No Tribunal de Vila Real, a Dr.ª Carmen Silva deparou-se com um caso inusual: duas mulheres que disputavam um cachecol. Não um cachecol qualquer, mas um cachecol de lã vermelha tricotado à mão que se tornara o centro de uma disputa familiar que ia muito além do próprio objeto.
Ana Sousa, de quarenta e dois anos, afirmava que o cachecol lhe pertencia por direito - tinha sido tricotado pela sua falecida sogra especificamente para ela. Beatriz Sousa, de trinta e oito anos, cunhada de Ana, argumentava que o cachecol deveria permanecer na família Sousa, uma vez que Ana se tinha divorciado do seu irmão Carlos.
"Meritíssima," começou o advogado de Ana, "o cachecol foi claramente oferecido à minha cliente pela D. Maria Sousa dois anos antes do seu falecimento. Há fotografias da minha cliente a usá-lo em várias ocasiões familiares."
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A Dr.ª Silva olhou para o cachecol cuidadosamente dobrado sobre a mesa como prova. Era de facto uma peça notável - lã vermelha viva com um padrão intrincado de pontos que evidenciavam horas de trabalho meticuloso.
"D. Ana," dirigiu-se à primeira requerente, "pode contar-me as circunstâncias em que recebeu este cachecol?"
Ana respirou fundo. "A D. Maria, a minha ex-sogra, deu-mo no Natal de 2021. Disse que tinha demorado meses a fazê-lo e que queria que eu soubesse que me considerava uma filha. Na altura, o Carlos e eu já estávamos com problemas no casamento, mas ela disse que isso não mudava nada - eu continuaria sempre a ser família para ela."
"E D. Beatriz, qual é a sua versão?"
"A minha mãe tricotava para toda a família, Meritíssima. Fez cachecóis para todos os netos, para mim, para as minhas cunhadas. Este cachecol fazia parte do seu legado familiar. Quando a Ana se divorciou do meu irmão, levou muitas coisas que pertenciam à nossa família."
"Que outras coisas?" perguntou a juíza.
Beatriz hesitou. "Fotografias, receitas da família, objetos decorativos que a minha mãe lhe tinha oferecido ao longo dos anos."
"E isso incomoda-a?"
"Sim. A Ana fez parte da nossa família durante doze anos, mas quando escolheu partir, não devia ter levado as nossas memórias com ela."
A Dr.ª Silva virou-se para Ana. "D. Ana, porque é este cachecol tão importante para si?"
Ana olhou para o cachecol e depois para Beatriz. Quando falou, a voz saía-lhe embargada.
"Porque é a única prova que tenho de que alguém me amou incondicionalmente. O meu casamento com o Carlos estava a destruir-me. Ele bebia, estava sempre zangado, fazia-me sentir que eu não prestava para nada. Mas a D. Maria... ela via-me. Quando me deu este cachecol, disse que eu era uma mulher forte e que merecia ser feliz. Foi ela que me encorajou a deixar o Carlos."
"E não voltou a falar com a família depois do divórcio?"
"Tentei. Liguei à Beatriz várias vezes, enviei mensagens. Queria manter contacto, especialmente com a D. Maria, que estava doente. Mas a Beatriz disse-me que eu já não era bem-vinda, que tinha feito mal suficiente à família."
A Dr.ª Silva olhou para Beatriz. "É verdade?"
Beatriz baixou os olhos. "Estava zangada. O meu irmão ficou destroçado com o divórcio. Culpei a Ana."
"E agora?"
"Agora... agora sei que o Carlos tem problemas com álcool há anos. A Ana não foi a culpada."
A sala ficou em silêncio por um momento. A Dr.ª Silva folheou o processo, depois levantou-se e foi até ao cachecol.
"Posso?" perguntou, pegando-lhe ao colo. "É realmente um trabalho notável. Devem ter sido meses de trabalho."
"A minha mãe tricotava todas as noites enquanto via televisão," disse Beatriz, com um sorriso nostálgico. "Dizia que era a sua forma de meditação."
"D. Ana, se o tribunal decidir a seu favor, o que fará com o cachecol?"
"Usá-lo. Especialmente quando me sentir perdida. É como ter um abraço da D. Maria sempre comigo."
"E D. Beatriz, se o tribunal decidir a seu favor?"
Beatriz ficou calada por um longo momento. "Guardá-lo no armário com as outras coisas da minha mãe."
A Dr.ª Silva voltou a sentar-se. "Vou propor uma solução diferente. Este cachecol vai ficar temporariamente na posse do tribunal enquanto vocês as duas pensam numa forma de honrar verdadeiramente a memória da D. Maria Sousa."
"Não percebo, Meritíssima," disse o advogado de Ana.
"A D. Maria tricotou este cachecol para manter alguém aquecido, não para ficar guardado num armário. Mas também o tricotou como expressão de amor familiar. Talvez exista uma forma de honrar ambos os aspetos."
Deu-lhes duas semanas para chegarem a uma proposta conjunta.
Na audiência seguinte, Ana e Beatriz chegaram juntas. Beatriz foi a primeira a falar.
"Meritíssima, tive muito tempo para pensar. A minha mãe tricotou este cachecol para a Ana porque a considerava família. Quando ela morreu, uma das últimas coisas que me disse foi que esperava que eu cuidasse da Ana, porque divorciada ou não, ela continuaria a ser sua nora."
"E chegaram a algum acordo?"
"Sim," respondeu Ana. "O cachecol fica comigo, mas comprometo-me a usá-lo sempre que for a eventos familiares dos Sousa - aniversários, batizados, casamentos. E a Beatriz comprometeu-se a incluir-me nestes eventos."
"E há mais," acrescentou Beatriz. "A Ana vai ensinar-me a tricotar. A minha mãe tentou ensinar-me durante anos, mas eu nunca tive paciência. Agora quero aprender, para fazer cachecóis para os meus filhos."
A Dr.ª Silva sorriu. "E se um dia uma de vocês se voltar a casar?"
"O cachecol vai aos dois casamentos," responderam em uníssono.
Seis meses depois, a Dr.ª Silva recebeu uma fotografia pelo correio. Mostrava Ana e Beatriz sentadas numa sala, tricotando juntas. Ana usava o cachecol vermelho, e Beatriz segurava agulhas com uma peça em tons de azul. No verso da fotografia, uma nota: "A D. Maria estaria orgulhosa. Obrigada por nos ajudar a lembrar que a família verdadeira não se desfaz com papéis de divórcio."
O Cachecol Vermelho
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A Chave Esquecida
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
O Relógio de Parede
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
A cadeira do juiz
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
A máquina de lavar
Na prática, discutia-se uma máquina de lavar roupa. A filha, Leonor, seis anos, vivia com a mãe, via o pai de quinze em quinze dias e às quartas-feiras à tarde. O pai pedia alteração ao regime para incluir uma noite adicional por semana. A mãe aceitava a alteração, com uma condição: que a roupa voltasse lavada.
Edições do Dia
Boas leituras!