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Mariana Esteves Economista
05.02.2024

Será mais lucrativo estar em casa a receber subsídios do que trabalhar?

Seja por idade, doença, acidente, desemprego ou parentalidade, o Estado Social serve para que ninguém se sujeite a uma vida indigna para sobreviver. Serve ainda para que nenhuma criança cresça sem oportunidades, condenada à pobreza.

Na semana passada, Luís Montenegro, num momento de grande originalidade, alertou que"Não pode ser mais lucrativo estar em casa a receber subsídios do que trabalhar"e que "(...) temos de incutir que a classe média-alta seja recompensada pelos seus contributos". Lembra-vos alguém? 

A narrativa não é nova e demonstra bem o vazio ideológico do centro-direita português. Ao insinuar que as transferências sociais que existem em Portugal desincentivam o trabalho, Montenegro aposta na bem conhecida retórica do "só é pobre quem quer" e mostra desconhecer a realidade da proteção social no país que pretende governar. 

Os últimos dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento divulgado pelo INE, mostram que, em 2022, existiam em Portugal quase 1.8 milhões de pessoas em risco de pobreza  (17% da população). Isto é, que viviam com rendimentos monetários líquidos por adulto equivalente inferiores a 591 €/mês. Na verdade, na ausência de transferências sociais - como o subsídio de doença, desemprego, ou o abono família - seriam mais de 2.2 milhões (21.2%) e, excluindo as pensões de velhice, estaríamos a falar de mais de 4 milhões (41.8%). 

Um dos principais fatores de risco de pobreza é a composição familiar, estando as famílias monoparentais e numerosas mais afetadas. Isto acontece porque, ao nascer uma criança, o mesmo rendimento familiar passa a sustentar as necessidades de mais uma pessoa. Deste modo, mesmo uma família que não é pobre pode passar a sê-lo com o nascimento de um filho. Existem, portanto, transferências sociais para a proteção à família e à criança, como o abono de família, as prestações de assistência a descendentes, ou até o tão famoso Rendimento Social de Inserção (RSI). 

Este último, tantas vezes criticado por financiar os "subsídio-dependentes", apoiou, só em dezembro de 2023, cerca de 89 mil famílias, com uma prestação média de 134.5 € por beneficiário e 284.1 € por família. Estes são dados da Segurança Social (SS), que acrescentam ainda que os maiores "subsídio-dependentes" são as crianças, representando 32.3% dos beneficiários. Logo seguidas dos outros conhecidos mandriões, as pessoas com mais de 50 anos, representando 30.4%.  Por falar em mandriões, o Complemento Solidário para Idosos (CSI), apoiou 137.9 mil pessoas no último mês, com um valor médio luxuoso de 151.4 €.

Outro fator importante ao falarmos de pobreza é a relação com o mercado de trabalho. De facto, mais de 43% dos desempregados vive abaixo do limiar de pobreza. Não é surpreendente, quando os dados da SS mostram que as 181.3 mil pessoas que beneficiaram deste subsídio receberam, em média, 585 €/mês. Isto não é exclusivo do subsídio de desemprego: os 134,5 € de RSI ou os 151,4 € de CSI estão longe de ser lucrativos. Na realidade, permitem apenas dar alguma dignidade à vida, sendo um importante instrumento na diminuição da intensidade da pobreza e não no desincentivo ao trabalho. 

Por falar em trabalho, convém relembrar que este não chega para sair da pobreza. Os últimos dados divulgados pelo INE, mostram que 10% dos trabalhadores portugueses são pobres. A precariedade laboral e os salários baixos não chegam para suportar o aumento dos custos de vida, especialmente em bens essenciais como habitação, alimentação e energia. Se queremos diminuir os subsídios sociais, é urgente entendermos que o combate à pobreza passa, não só, mas também, por políticas públicas de habitação e proteção laboral.  

Apesar deste combate não se fazer apenas através do Estado Social, os subsídios que Montenegro critica, na verdade, apenas tentam não deixar ninguém para trás. Seja por idade, doença, acidente, desemprego ou parentalidade, o Estado Social serve para que ninguém se sujeite a uma vida indigna para sobreviver. Serve ainda para que nenhuma criança cresça sem oportunidades, condenada à pobreza. Esse sim é o papel das prestações sociais e graças a elas são menos 42 mil a viver na pobreza. 

Até 2030, o compromisso estabelecido a nível europeu é que sejam menos 750 mil a viver nestas condições em Portugal. Se queremos cumpri-lo, o caminho não será pelo corte nas transferências sociais, mas por políticas públicas capazes de responder à crise na habitação, aos baixos salários e à precariedade laboral.

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