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João Paulo Batalha
23.10.2025

Uma guerra suja

A tensão entre política e justiça nasce, antes de tudo, do fracasso da ética pública.

Protestando uma perseguição política pelas forças sinistras do poder judicial, esta semana Nicolas Sarkozy lá entrou na cadeia, em Paris, para começar a cumprir os cinco anos de prisão a que foi condenado por permitir que a sua candidatura presidencial tivesse namorado fundos de campanha ilegais ao ditador líbio Khadafi. A vitimização de Sarkozy, usada como álibi para os seus crimes, soa familiar em Portugal. A grande diferença é que não consta que a França se tenha escandalizado em ver a justiça atuar contra um ex-chefe de Estado. Por cá, qualquer investigação a políticos de topo (uns autarcas podem sempre cair sem grande alarido) desata um afinado coro das elites contra os abusos populistas do Ministério Público. 

Em parte, é difícil não conceder algum benefício da dúvida às críticas. Parte falta de meios, parte inexperiência na gestão de processos delicados, grande parte falta de capacidade de comunicar, o Ministério Público põe-se a jeito para ataques. Quase dois anos depois da demissão de António Costa (que acabou por nem fazer mal à sua carreira política), ainda não sabemos que indícios há contra o então primeiro-ministro, mencionado por suspeitos da Operação Influencer. Nem sabemos mais nada sobre a própria Operação Influencer. Do mesmo modo, a já famosade Luís Montenegro leva seis meses em que pouco parece ter sido averiguado; e absolutamente nada prevenido. O primeiro resultado destas demoras e deste silêncio é espalhar sobre a política uma mancha de suspeição que só faz mal à democracia. O segundo resultado, igualmente tóxico, é que os políticos já se marimbam olimpicamente para qualquer suspeita judicial que os envolva. 

Esta semana, sem ninguém reparar, o primeiro-ministro respondeu a uma pergunta do PAN sobre os conflitos de interesses e as investigações judiciais visando o secretário de Estado da Agricultura, João Moura. Além das suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais nas suas empresas, o governante continua a deter interesses empresariais na área que tutela, levantando riscos óbvios de captura das políticas públicas para benefício do seu negócio. A isto respondeu o gabinete de Luís Montenegro com dois encolheres de ombros: a investigação judicial não aquece nem arrefece, enquanto não produzir um despacho de acusação ou arquivamento. Quanto ao conflito de interesses, atira-se a definição do Código de Conduta do Governo, um conceito juridiquês que remete para o Código do Procedimento Administrativo, como se isso resolvesse o problema quando, na verdade, só o explicita. E está a andar. 

Sim, o Ministério Público tem de ser mais expedito na investigação de casos sensíveis, para não deixar políticos pendurados. E tem de ser menos temeroso na sua comunicação pública. Mas quando o padrão ético no exercício de cargos políticos é este, não tenhamos ilusões: vai sempre sobrar para o Ministério Público, e vai sempre ser areia demais para a camioneta judicial. Mesmo dando de barato que não se encontre qualquer crime cometido pelo secretário de Estado da Agricultura, a sério que querem que aceitemos que os seus interesses privados não têm qualquer impacto na sua autoridade pública? De que nos serve ter um Código de Conduta (herdado do Governo de António Costa, que deu no que deu) a fixar normas para conflitos de interesses, se depois o próprio conceito é ignorado, ou definido em termos tão estreitos que acabam a branquear tudo? 

Isto não é de agora. No seu novo livro, João Miguel Tavares argumenta que o escrutínio público sobre José Sócrates podia e devia ter prevenido a ascensão de um verdadeiro ativo tóxico da democracia portuguesa. Não impediu, em parte porque os jornalistas que investigaram as suspeitas que já pairavam desde o início foram cilindrados pelo "animal feroz". Mas Sócrates não foi promovido só pela inércia da imprensa, pela cumplicidade dos seus camaradas ou pela complacência do eleitorado. Teria ele sequer sido eleito secretário-geral do PS se um regulador a sério tivesse olhado com olhos de ver para as suas declarações de património e as confrontasse com o apartamento de luxo que já tinha no Marquês de Pombal – e que deu nome à Operação que hoje o traz a tribunal, acusado de dezenas de crimes? 

Rui Rio e o seu Manifesto dos 50 teriam lata para vociferar em público contra investigações ao desvio de dinheiro do Parlamento para o PSD se não tivessem andado anos a embrulhar toda a legislação de financiamento político em sucessivas rondas de opacidade e deliberada confusão interpretativa? 

António Costa e a sua claque estariam hoje a chorar uma demissão provocada (dizem eles) por um parágrafo maldoso de um comunicado da Procuradoria-Geral da República se, quando era tempo, o então primeiro-ministro tivesse dado ouvidos a quem, publicamente, denunciou o currículo de facilidades e portas giratórias do seu chefe de gabinete e do lobista seu melhor amigo – a quem o próprio Costa, no início do mandato, entregou missões públicas (como a renegociação da privatização da TAP) na mais absoluta informalidade? 

Luís Montenegro teria palco para chorar as investigações do Ministério Público à Spinumviva se, quando o caso foi revelado (ou melhor, antes de entrar no cargo) tivesse simplesmente extinguido a empresa? Poderia protestar contra o escrutínio jornalístico, no seu estilo Sócrates-suave, se tivesse de lidar com uma Entidade para a Transparência que, logo de início, lhe fizesse as perguntas certas e não relegasse a falta de respostas claras para problema a arrastar ao longo de meses, em aturada correspondência confidencial? 

Todos os processos sensíveis em que o MP vai dando tiros nos pés e convidando tiros no coração – todos eles – nasceram da pena do legislador e de uma deliberada balbúrdia ética em que as instituições políticas vivem há demasiados anos, com proveito e conforto. Todos eles podiam e deviam ter sido evitados, antes de chegarem a inquérito judicial (ou averiguação preventiva) se, a montante, os partidos políticos, os Governos e o Parlamento tivessem feito o seu trabalho. Não o fizeram e não foi por falta de aviso. As suas lágrimas de crocodilo servem agora para afogar a democracia e provocar uma tensão entre política e justiça que os seus autores não quiseram evitar e que espicaçam, para que lhes sirva de derradeiro álibi. Esta é a ameaça. Aqui ou em França, o perigo não são os magistrados.  

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