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João Paulo Batalha
28.08.2025

Nem no papel

O Governo adiou (de novo) a obrigação de uma “declaração de honra” inútil contra a corrupção.

O pecado original vem do Governo Costa, que se especializou em fabricar papéis, declarações e questionários para combater a corrupção – e acabou a cair envolvo em suspeitas de maroscas promíscuas com interesses privados. O , que criou o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) e aprovou um Regime Geral de Prevenção da Corrupção, mandou que todos os dirigentes e funcionários de entidades públicas que interviessem em processos sensíveis, como a contratação pública, licenciamentos ou a atribuição de subsídios passassem a preencher e assinar uma “declaração de honra”, jurando que não tinham conflitos de interesses no processo em causa.

Multiplique o leitor todos os organismos públicos existentes em Portugal pela quantidade de procedimentos tramitados por cada um deles e pelos dirigentes e funcionários que tocam em cada processo. Já adivinha a chuva de papel que isto ia produzir, de gente jurando ter as mãos e a alma limpas em cada decisão de cada organismo público. Uma avalancha de proclamações inútil e inócua, até porque não é acompanhada de qualquer mecanismo de verificação ou de sanções pela falsidade da declaração. É só mais uma treta para assinar e carimbar – razão pela qual somos um país muito burocrático e muito corrompido.

Adiante. A lei mandou que dita declaração obrigatória fosse redigida por portaria do Governo, o que veio a acontecer já no executivo de Luís Montenegro. Diz lá “Portaria”, mas devia ler-se “Porcaria”. Em rigor, quatro porcarias, e a saga ainda não acabou. Vamos a elas, por ordem. A 14 de agosto do ano passado saiu finalmente a , em que se aprova a declaração inócua, na qual cada trabalhador ou dirigente “declara, sob compromisso de honra”, que não tem conflitos de interesses “relativamente ao presente procedimento”. Uma declaração chapa-quatro, que qualquer pessoa semiletrada demoraria três minutos a redigir (ou três segundos, se entregasse a tarefa a alguma aplicação de inteligência artificial), mas que demorou quase três anos a sair. Inútil, porque nem sequer vem acompanhada de qualquer guia prático sobre o que constitui, ou pode constituir, um conflito de interesses. Remete apenas para a definição legal: “qualquer situação em que se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da conduta ou decisão”. A mesma definição que permitiu ao primeiro-ministro proclamar que, em relação aos seus negócios familiares na Spinumviva, ninguém podia duvidar da sua conduta. Está feito.

A Porcaria original aprovou a declaração e mandou que entrasse em vigor 30 dias depois. Também aqui, chapa-quatro. Só que, passados os 30 dias, sai a , de 4 de outubro. Nela, o Governo descobriu, depois de protestos sobretudo dos municípios, que o escudo de papel, inócuo e inútil, “coloca dificuldades de aplicação, especialmente no que toca a entidades envolvidas num número significativo de procedimentos”. Por isso, já que o Governo até estava a rever o Regime Geral de Prevenção da Corrupção e a lei do MENAC, adia-se a entrada em vigor da dita declaração, de 30 dias para seis meses.

No início deste ano estava o Governo a rever a dita lei. Mas, como o trabalho não estava feito e a Porcaria original estava a fazer seis meses, sai a terceira , de 14 de fevereiro, que chuta a declaração “por mais seis meses, de modo a acautelar as legítimas expectativas das entidades abrangidas”. As “legítimas expectativas das entidades abrangidas”, recorde-se, são de não ter de cumprir uma lei aprovada mais de três anos antes. Ou seja, a Porcaria de agosto de 2024, que deveria ter entrado em vigor em setembro seguinte, passava a vigorar só a partir de agosto de 2025, um ano depois. Já adivinha o que vem a seguir.

O Governo lá reviu a lei do MENAC, que prevê a declaração inútil e inócua, mas acabou por não tocar na obrigação de trabalhadores e dirigentes entregarem o papel assinado. E assim chegámos a agosto, quando devia finalmente, depois de um ano e dois adiamentos, entrar em vigor. Venha de lá então a última , de 14 de agosto. Agora, diz o Governo que “com o processo eleitoral autárquico em curso e a abertura de um novo ciclo da governação local, torna-se manifestamente inconveniente a imposição imediata” do famoso (ou infame) carimbo. A “imposição imediata”, recorde-se, é um papel inútil e inócuo previsto por lei há 4 anos e que devia ter entrado em vigor há 1. Nem isso conseguem. Vai daí, chuta-se mais um ano, para agosto de 2026. Na “expectativa legítima” de que, até agosto de 2026, abortem finalmente a proclamação inútil e inócua que nunca chegou a nascer.

Eis o combate à corrupção em Portugal: só existe no papel, e às vezes nem isso. Criam-se obrigações burocráticas sem utilidade alguma, e depois vai-se empurrando com a barriga para que nem esses simulacros de controlo se cumpram. Também não se removem para criar antes qualquer coisa útil e eficaz. Em vez disso, vamos saltando de portaria em portaria, de porcaria em porcaria, a queimar tempo e deitar fora oportunidades. Até para o ano.

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